quinta-feira, outubro 19, 2006

Caverna de Platão eletrificada

Mas, dirão vocês, e com toda razão, os tempos são outros. Já não são os do cinema, nem sequer exclusivamente os da televisão, muito menos do Fuhrer. Então, para apenas roçar o que está em jogo hoje, eu proporia um salto, e vou tentar uma breve descrição um pouco mais geral sobre os tempos presentes, proposta há poucos anos atrás por Franco Berardi, e que apesar de algumas reticências que se possa ter com relação a um ou outro aspecto, conserva plenamente sua atualidade (1). Bifo lembra que já não se pode expressar o conjunto dos processos em curso em termos de uma física dos corpos sólidos, mas só em termos de uma psicoquímica dos fluxos tecnoneuronais. A sociedade aparece como uma imensa solução flúida na qual se difundem, se diluem, se mesclam e se confudem substâncias psicoquímicas de cores diferentes. Crenças, tradições, ilusões, fés, ódios, desejos que provêm de vários estratos do inconsciente antropológico. Fluxos midiáticos que provêm de várias fontes do ciberespaço. Fluxos subculturais que provêm dos vários níveis do imaginário planetário. E longe de reduzir ou uniformizar o comportamento cultural, a integração planetária produziu uma multiplicação de refrações, esfumaçamentos, meios-tons que dependem dos diversos graus de contaminação. É verdade que a economia funciona como código semiótico transversal, capaz de comandar a gama infinita da diferenciação. Mas ela não unifica, não ajuda a encontrar um elemento universal humano no caleidoscópio das diferenças, ao contrário, inocula agressividade nas relações, rigidificações identitárias. As consequencias desse contexto, do ponto de vista de uma suposta democracia, são imponderáveis. As decisões globais dependem cada vez menos da opinião e da vontade, e cada vez mais do dever cego e inevitável dos fluxos psicoquímicos (hábitos, medos, ilusões, fanatismos) que atravessam a mente social. O lugar de formação da esfera pública se transferiu da dimensão do confronto entre opiniões ideologicamente fundadas para o magma do oceano neurotelemático, no qual as coisas se determinam fragmentariamente, imprevisivelmente, por efeito de tempestades psicomagnéticas e cada vez menos referidas a esquemas políticos definidos. Claro que há divergência de opiniões, cada um pode se expressar como quiser, mas isso já não tem nenhuma importância, pois já nada significa, não tem efeito algum. A proliferação ilimitada das fontes de informação, por sua vez, não necessariamente significa uma abertura democrática, talvez porque o efeito sociedade não se encontra mais na esfera do discurso, mas na psicoquímica. Ali não temos discurso, mas imagens, estratégias mais ou menos conscientes de pervasão subliminar. Potência imensa do fluxo invasivo que emana do poder infoesférico e abole a distinção entre esfera onírica e esfera da vida cotidiana. A partir dos anos 70, sobretudo, e do encontro entre politica e publicidade, com a difusão da televisão como eletrodoméstico viral omniinvasivo, o destino coletivo se decide cada vez menos na esfera da política democrática, e cada vez mais na esfera psicodélica das aparições de fantasmas inconscientes. Assim, essa mutação não pode ser apreendida com as categorias da democracia moderna ou representativa, com o reino da opinião, das regras. Diante da decomposição da mente moderna, resultante dessa mutação do ambiente em que se forma essa mente, do adensamento da crosta infoesférica, da expansão do ciberespaço, não cabem mais as modalidades lógico-críticas. Assistimos à integração da mente no processo de produção capitalista, à incorporação da inteligência na lógica do capital. Assim, não há mais sentido em falar da restauração das condições democráticas da política, pois a formação livre de opinião, condição necessária para o exercício do que nos acostumamos a chamar de democracia, tende a diluir-se. Nas condições da infoprodução, os fluxos psicoquímicos que agem sobre a mente social adquirem tal intensidade e tal potência invasiva, que os sinais pelos quais a mente é estimulada não são mais julgáveis criticamente. Penetramos numa zona de indistinção, de indecidibilidade. É o reino do Neuromagma. Na espiral neuromagmática a mente não pode mais elaborar escolhas conscientes, nem exprimir subjetividade coerente. Colocada nas condições de indecibilidade, o organismo consciente reage com pânico, depressão, ou se reterritorializa na identidade.

O virtual é uma imagem em espelho que forma um curto circuito com a imagem atual, sem que se possa dizer qual das duas é a verdadeira: eu já vivi este momento antes? Sim, mas em um tempo sempre por vir."/"Se tudo nos parece uma ficção, uma ficção de ficção, se tudo parece conspirar para uma desmaterialização do mundo, se temos dificuldades em viver a história, é porque tudo parece já ter sido programado, preestabelecido, construído, calculado de forma a nos tirar o poder de fabulação."/André Parente

2 Comments:

At 8:07 PM, Anonymous Anônimo said...

A ciência quando foi em busca do cerebro como último lugar explicativo do sentido que aparecia como caixa preta e centro de controle, havia se transformado em cerebro coletivo. Agora deseja-se transforma-lo numa paramnésia metafísica na qual se cristaliza o passado com a finalidade de tornar o pensamento repetível.

 
At 1:47 PM, Anonymous Anônimo said...

Há algum tempo – um tempo infinitesimal que me leva até os rincões de começos de mundos, de quando meu corpo era uma tocha esférica – venho compondo, com linhas de corpos em fogo e com o plano de um pensamento impassível, um conceito de Universidade do FORA que seja uma coisa viva.


A Universidade do FORA é uma intensidade ou um corisco na matéria escura da vida para liberar o pensamento para a sua meia-noite – liberar o pensamento das amarras e peias da Academia, para afirmar que aquele não tem pátria nem mátria. Não nos agrada mais o feminino que o masculino – a nós, que somos afetados imediatamente pelo cosmos, seu infinitamente grande e seu infinitamente pequeno, suas sutis flutuações, seus rearranjos luminosos, esse ser de luz e nada; a nós, cujo ultra-sexo é indiferente às dicotomias; a nós, nós mesmos uma inflexão na memória cósmica, um movimento sensual de contração na Rizosfera (Deleuze e Guattari me perpassam...).


Uma inflexão cuja força põe em modificação tanto mundo físico, quanto o orgânico e o simbólico – e todos os mundos desses mundos. Uma potência que faz todos estes estratos balouçarem – contrações geológicas para novas sedimentações; delírios dos corpos em torno de Artaud e Geoffroy Saint-Hilaire, em busca de outros modos de organização; descompasso da história-macho cujo caminho linear se vê recortado e estraçalhado por toda sorte de devires, de modo a se tornar a semi-reta de um ilimitado labirinto sem Ariadne, sem Teseu, sem fio – mas espaço de Proteu.


Pensamos que o fora da Academia só pode ser uma Universidade do FORA. Aqui, o termo Universidade não designa um novo lugar de produção de conhecimento, uma nova Academia, a mesma universidade medieval, escolástica, cristã, clerical que é a mesma universidade renascentista, humanista e universalista que é a mesma universidade iluminista, progressista e futurista que é a mesma universidade moderna, pragmatista, positivista, laica, gratuita, estatal ou privada – que nos importa? Se o que sempre esteve em jogo foi a Captura do pensamento por lunáticos do Clero, por virtuosos Iluminados, por cérebros encarcerados pelo movimento de produção do lucro, etc.


Não se trata de uma reivindicaçãozinha intelectualista. Pensamos o intelectual, na Universidade do FORA, de outro modo. Basta conclamar os devires, contrair e distender a MEMÓRIA e lembrar que os intelectuais na Idade Média avessos às categorias gramscianas, retomadas por Le Goff, de “crítico” e “orgânico” – esses intelectuais, dizia, deliraram a sexualidade, a cosmologia, a ética, a experiência do pensamento.


Abelardo, Mestre Eckhart e todos os empiristas superiores, os Goliardos do pensamento que é corpo, do espírito que é coisa.



É deliciosos mergulhar em Artaud e trazer de seu mar de vísceras e pregas Abelardo, carnoso e orgástico, a amar Heloísa em sua filosofia: “Sim, Heloísa, em ti é que ando com toda a minha filosofia (...) O beijo abre as suas cavernas aonde morre o mar. E veja-se o espasmo onde o céu concorre, uma espiritual coligação se desfralda, DE MIM CHEGADO. Ah! Já só me sinto vísceras, sem ponte do espírito por cima. Sem tantos sentidos mágicos, tantos segredos reunidos. Ela e eu. Estamos realmente lá. Domino-a. Abraço-a. Uma última pressão me imobiliza, me congela. Sinto entre as coxas a Igreja a deter-me, a lamentar-se; irá paralisar-me? Vou-me retirar? Não, não, afasto a derradeira muralha. S. Francisco de Assis, que me guardava o sexo, afasta-se. Santa Brígida abre-me os dentes. Santo Agostinho desaperta-me o cinto. Santa Catarina de Sena adormece Deus. Acabou-se bem acabado, deixei de ser virgem. A muralha celeste caiu. Estou a ser tocado pela universal loucura. Escalo o meu orgasmo no mais alto éter” (A. ARTAUD: Arte e Morte, pp. 26-7).



A Igreja está no corpo de Abelardo e, como uma muralha, quer deter o dardo obsceno, a estaca mágica do goliardo e a cripta demoníaca de Heloísa. Mas veja como cai a muralha celeste, a abóbada clerical que lhe revestia o cérebro e o sexo. Desaperta o cinto, abre as pernas e mergulha na imanência. O hímen se rompe e derrama o FORA. Heloísa e Abelardo estão realmente lá. Lá que não é além, mas ao lado, pelo meio das pernas.



Quando as muralhas desabam é o FORA que nos perpassa em nosso trajeto pelo seu MEIO. O beijo abre as cavernas e o corpo de Abelardo é liberado, todo o seu pensamento é transvazado à Igreja.


E nós, virgens do pensamento? Que muralhas revestem os contornos sinuosos de nosso cérebro, a converter-lhe em verdadeira cidade dos templários, a coibir nosso desejo para submetê-lo à falta, a codificar nossas vontades e a territorializar nossos mínimos procedimentos para atar nossa potência ao imóvel e frio mastro do poder?


Que acabe bem acabada nossa virgindade! Que o pensamento seja transvazado ao FORA e que o CÉREBRO seja todo ele uma ilimitada periferia.


Queremos um cérebro
que seja uma cidade de vespas
uma cidade de abelhas,
um ninho de ratos
um subterrâneo de formigas
uma multiplicidade incontrolável
em que se encontre um outra ordem
não mais a de Deus, a do Homem, a do Estado.

 

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