segunda-feira, outubro 30, 2006

CINEMA

A arma, o olho e o espetáculoPor Ilana Feldman

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Em “Guerra e cinema”, lançado no Brasil, o pensador francês Paul Virilio investiga a relação entre logística militar e dispositivos visuais
“Uma guerra não é para ser ganha, mas para ser eternizada”, escreveu George Orwell em “1984”, indicando a seminal relação entre a guerra e a sua divulgação e representação. A eternização a que se referia Orwell é assim garantida pela lógica do espetáculo que, desde a Primeira Guerra Mundial, rege a ordenação visual dos conflitos, quando a presença do visor telescópico da câmera a bordo dos aviões de reconhecimento prefigurou uma mutação das percepções e sensibilidades. A partir desse momento, uma des-realização crescente do engajamento militar se fará notar, “quando a imagem se prepara para triunfar sobre o objeto, o tempo sobre o espaço, em uma guerra industrial na qual a representação dos acontecimentos domina a apresentação dos fatos”.
Em “Guerra e cinema” (lançado agora pela Boitempo Editorial), o arquiteto e urbanista francês Paul Virilio lança-se nessa ousada empreitada: investigar historicamente a íntima relação entre a logística da guerra e o desenvolvimento de dispositivos de visualização a partir da cronofotografia
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1 e do cinematógrafo, tendo como foco principal o resultado do acoplamento dessas duas tecnologias, guerra e cinema, na percepção e na capacidade de afetação dos corpos.
Repleto de informações históricas descritas como se fossem detalhes picantes de uma história assombrosa, a nossa, o livro é o trabalho de alguém que conheceu a guerra e seus aparatos tecnológicos de perto. Como um “war-baby” durante a ocupação nazista na França, Virilio testemunhou a capacidade de mobilização e de alteração da percepção provocada pelo impacto psíquico das armas. Para ele, “não existe arma sofisticada sem mistificação psicológica”, assim como não existe guerra sem representação, já que além de instrumentos de destruição, elas são também “instrumentos de percepção”, ou seja, estimuladores que provocam fenômenos físico-químicos e neurológicos sobre os órgãos do sentido.
É por isso que, para Virilio, “a história das batalhas é, antes de mais nada, a história da metamorfose de seus campos de percepção”. Ou seja, a guerra consiste menos em conquistar vitórias materiais do que em apoderar-se da imaterialidade dos campos de percepção. Como escreveu Gustave Le Bon, autor de “Psicologia das massas”, no início do século passado, “a guerra não atinge somente a vida material dos povos, mas também seus pensamentos... e aqui voltamos a esta noção fundamental: não é o racional que conduz o mundo, mas as forças de origem afetiva, mítica ou coletiva que conduzem os homens. As forças imateriais são as verdadeiras condutoras dos combates”.
Mas quais seriam essas forças imateriais? Ou, ao menos, a partir do que elas seriam produzidas? O trabalho de Virilio vai justamente no sentido de associar a idéia de imaterialidade não só ao campo da percepção, como à produção de imaginário, a partir da logística espetacular que a guerra solicita, pois ela “não pode ser jamais separada do espetáculo mágico, já que sua principal finalidade é justamente a produção deste espetáculo: abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir-lhes, antes da morte, o pavor da morte”.
Desse modo, “Guerra e cinema” (publicado originalmente em 1984, com o nome de “Guerra e cinema: Logística da percepção”) tratará de defender a existência de uma osmose entre guerra e cinema industriais. Virilio não analisa filmes “sobre” guerras, que contenham temáticas bélicas ou cenas de batalhas, mas, antes, busca compreender uma outra categoria, bastante ampla, a de filmes “de” guerra, nos quais a belicosidade está articulada na própria forma, na linguagem, “uma vez que o cinema entra para a categoria das armas a partir do momento em que está apto a criar a surpresa técnica ou psicológica”.
E de que ordem seria essa surpresa? Neste ponto, Virilio se abstém e apenas indica que “os cineastas vão oferecer esses efeitos tecnológicos ao grande público como um espetáculo inédito, um prolongamento da guerra e de suas destruições morfológicas”. No entanto, seria interessante explicitar, na lacuna deixada por Virilio, que o cinema de guerra é todo e qualquer cinema sinestésico, que afeta o corpo do espectador com estímulos sensórios-motores, efeitos físico-químicos, fazendo uso de choques perceptivos –e aqui não há como não lembrar da “estética do choque” proposta por Walter Benjamin a partir da obra de Baudelaire- e de toda sorte de intensificações e explosões, sejam elas visuais, sonoras ou dramáticas, ocorram em melodramas, tragédias ou filmes policiais.
Sendo assim, não interessam os gêneros, os conteúdos, mas a linguagem e seus artifícios, que, através do corte, o elemento bélico da filmagem e da montagem –associado pelo crítico André Bazin à idéia de morte, de interrupção-, organizará ou bombardeará a percepção do espectador.
Fascinado e com a percepção consciente e crítica estilhaçada pela velocidade, o espectador é conduzido à hipnose e ao delírio cinemático –e aqui caberia lembrar que os primeiros produtos dopantes foram produzidos para suprir as necessidades dos pilotos durante a Guerra do Vietnã, um combate que, segundo Virilio, não distinguia o real do imaginário.
Não por acaso, a grande contribuição ao cinema trazida por “Apocalypse now”, de Francis Ford Coppola (1979) -considerado por Virilio, sem qualquer explicação, uma “semidecepção”-, foi a expressão, através da linguagem cinematográfica, do estado de alucinação e delírio em que se encontravam os soldados americanos no Vietnã. O filme acaba alterando a própria percepção dos espectadores que, a partir de então, teriam uma experiência sensorial mais próxima da desrealização cinemática da realidade, bem como da “transformação da guerra na terceira dimensão do cinema”.
Nesse sentido, também em “Farenheit 11.9”, de Michael Moore (2004), encontramos duas passagens antológicas, a despeito de sua montagem de eventos espetaculares. A primeira delas diz respeito à propaganda das Forças Armadas, veiculada na televisão americana, para o recrutamento de jovens, quando são utilizados procedimentos ficcionais e apelativos, como uma animação em cores vibrantes e a tradicional linguagem fática da publicidade. Aqui, vê-se uma osmose entre o chamado oficial à prontidão da guerra e a propaganda de uma espécie de game do “Comandos em ação”.
Em um segundo momento, “a transformação da guerra na terceira dimensão do cinema”, a que se refere Virilio, está cristalizada na cena em que soldados americanos, já no Iraque, admitem entusiasmadamente que, enquanto atiram em seus inimigos com os olhos acoplados em armas no interior de seus tanques, estão com os ouvidos plugados em fones, escutando um rock que diz: “Burn, motherfuckers, burn!”, como se através da trilha sonora encenassem a própria realidade.
Tal encenação -não no sentido da falsificação ou ilusão, mas no sentido “teatralizado” das execuções- também se faz presente na atual mise-en-scène do terror e em seu subproduto, os vídeos-terroristas, quando se percebe uma clara consciência de cena e de público-alvo por parte dos terroristas-diretores. “O terrorismo”, já nos alertava Virilio, “lembra-nos insidiosamente que a guerra é um sintoma delirante que funciona na meia-luz do transe”.
O casamento entre a arma e o olho
Considerado o primeiro western da história do cinema, “The great train robery”, dirigido por Edwin Porter em 1903, apresenta, ao final, um plano-próximo de um personagem (o ladrão-caubói) que, olhando para a câmera, atira nos olhos do espectador.
Anos antes, por volta de 1882, Étienne-Jules Marey, médico fisiologista francês, pesquisando a decomposição do movimento, inventou o fuzil cronofotográfico, colocando a cronofotografia a serviço da pesquisa militar sobre o movimento. Marey, defende Virilio, foi um elo essencial entre a arma automática e a fotografia instantânea, pois seu fuzil cronofotográfico não só precedeu a câmera dos irmãos Lumière, como também era descendente direto das armas de tambor e cilindro giratório. Após a morte de Marey, em 1904, seu assistente, Georges Demeny, então membro da comissão de elaboração do manual de infantaria, deu continuidade às pesquisas sobre a utilidade da cronofotografia na dosagem dos esforços do combatente.
Se, no final do século XIX, as pesquisas científicas acerca de novos aparatos ópticos, motivadas por fins médicos e militares, acabaram por divulgá-los como entretenimento para o olhar nas feiras populares, contribuindo para a emergência de um novo regime de percepção baseado em um novo observador, as pesquisas na área da aviação também possibilitaram que, a partir de 1914, o avião deixasse de ser um simples meio de voar, de bater recordes, para tornar-se um modo de ver ou, talvez, segundo Virilio, “o último modo de ver”. Ao contrário do que geralmente se pensa, a aviação de reconhecimento está na origem da arma aérea.
Desde sua origem, o campo de batalha é um campo de percepção e a máquina de guerra um instrumento de representação, pois a mão do piloto dispara a câmera ao mesmo tempo em que aciona a arma. Assim, “para o homem de guerra a função da arma é a função do olho”. É normal, portanto, que o violento rompimento cinemático do continuum espacial -deflagrado pela arma aérea- e os fulminantes progressos das tecnologias de guerra tenham literalmente explodido, a partir de 1914, a antiga visão homogênea e engendrado a heterogeneidade dos campos de percepção.
Com a velocidade de penetração da guerra e a sua transmutação de um complexo militar-industrial (que Benjamin chamaria de “complexo místico-científico”) em um complexo comunicacional-informacional, logo se intensifica a criação de uma indústria de massa que trata o realismo do mundo pela aceleração cinemática, onde o cinema baseado no desarranjo psicotrópico e na perturbação sensorial torna-se o desenho de uma nova geometria da visão.
Tal aceleração cinemática, porém, já comparecia nos idos da narrativa clássica. Em 1930, Duhamel, citado por Benjamin em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, dizia: “Já não posso mais pensar no que quero. As imagens em movimento substituíram meus pensamentos”.
Muitas décadas mais tarde, em “L’écran du désert: chroniques de la guerre” (A tela do deserto: crônicas da guerra), lançado apenas na França em 1991, Virilio desenvolveria ainda mais o tema, tendo como alvo a transmutação da aceleração cinemática na imediatez do tempo dito real: “Não há política possível na escala da velocidade da luz. A política é o tempo da reflexão. Hoje não temos mais tempo para refletir, as coisas que vemos já aconteceram. E é necessário reagir imediatamente. Uma política do tempo real é possível? Uma política autoritária, sim. Quando não há mais tempo para partilhar, o que partilhamos? Emoções”
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2.
Os “alvos nervosos” que nos tornamos
Sem nunca perder do horizonte a relação entre guerra e tecnologia, Virilio irá apostar, desde “Guerra e cinema”, na idéia de que todos nós, espectadores, somos “alvos nervosos” em potencial: corpos afetados e configurados por determinadas relações com as tecnologias de imagem e com as biotecnologias; corpos atravessados pela aceleração dos fluxos e por desejos de hiperestimulação e excitação; corpos turbinados, “bombados” e bombardeados.
Em “Do super-homem ao homem superexcitado”, texto publicado em “A arte do motor”, lançado aqui em 1996, Virilio lança como epígrafe a sugestiva frase de Nietzsche: “O que mais importa ao homem moderno não é mais o prazer ou o desprazer, mas estar excitado”, pensamento que já apontava para uma necessidade de constantes estimulações nervosas desde fins do século XIX.
Para Virilio, foi exatamente essa demanda por excitação que, junto com a precisão do tiro-câmera na origem do cinema, criou pânico entre os espectadores durante as “demonstrações de movimento” dos irmãos Lumière, com a famosa chegada do trem na estação de Ciotat. Segundo descrições da época, os espectadores tinham a sensação de poderem ser esmagados pelo trem, não porque fossem mais ingênuos, mas porque, já naquela época, havia um pacto em construção de crença na imagem cinemática.
Esse tipo de crença, que provinha das impressões de velocidade buscadas nos parques de diversões e trem-fantasmas desde a emergência da cultura das sensações em fins do século XIX, não desapareceu, pois a familiaridade tornava, segundo Virilio, o medo ainda mais pernicioso. A partir do momento em que aprende a controlar suas reações nervosas, o público começa a ver a morte como algo extremamente excitante.[BIO] [/XBIO]-->
1 - Cronofotografia: Método de análise do movimento por meio de fotografias tiradas sucessivamente com intervalos iguais, considerado a base epistemológica a partir da qual pôde se desenvolver o cinematógrafo.
2 - Trecho citado e traduzido por Maria Cristina Franco Ferraz, no artigo “Guerra, televisão e superexcitação dos corpos: ensaio de reflexão acerca dos atentados de 11 de setembro de 2001”. In: Sergio Porto (org.). “A incompreensão das diferenças: 11 de setembro em Nova York”. Brasília, 2002, p. 177-189.