quinta-feira, novembro 16, 2006

DANÇA E RIZOMA

Ana Carolina de Souza Silva
Ser ou não ser linguagem: uma questão que insistentemente movimenta
o pensamento contemporâneo sobre a arte. Mais que discutir
conceitualmente tais possibilidades, este texto pretende apontar suas
implicações no efetivo fazer artístico, acreditando que pensar e fazer não se
isolam em esferas incomunicáveis, mas são partes mesmo um do outro.
Ambientado no universo da dança, este trabalho busca refletir sobre o
conceito de linguagem a partir de um diálogo feito com o pensamento
filosófico contemporâneo, salientando possíveis conexões entre eles.
Como ponto de partida, um vez que se está falando de dança, é preciso
tecer alguns comentários sobre o corpo e suas formas de ação.
O ser humano, em sua ação motora, possui limitações funcionais
advindas da sua constituição biológica que determinam as suas
possibilidades de movimento. Os padrões motores são padrões mecânicos,
baseados em equilíbrio de forças, em eixos e alavancas, em centro de
gravidade. A cinesiologia é o ramo da ciência que se dedica ao estudo desses
padrões. Por ela sabe-se que a ação do músculo é, de fato, dual: ou ele
tensiona-se ou relaxa-se. A variedade e complexidade dos movimentos
humanos decorrem de várias possibilidades combinatórias do funcionamento
seletivo de cada unidade motora
i
individualmente. O aprendizado motor
depende de uma estrutura organizada hierarquicamente, de uma assimilação
de padrões por repetição. Nesse sentido, habilidades motoras complexas
dependem da automatização de outras menos complexas, e se baseiam na
recombinação dos elementos destas últimas (RASCH; BURKE, 1987, p.110).
Assim é, pois, que para andar a criança passa pelas etapas do sentar,
engatinhar, levantar.
Por certo se tem em conta que o movimento humano é fruto de um
encadeamento neuromotor complexo, que envolve tanto os impulsos
cerebrais como as ações das unidades motoras. No entanto, interessa, nesse
momento, evidenciar o modelo de ação destas últimas, modelo este que,
como foi visto acima, responde dicotomicamente aos estímulos que recebe
(tensão ou relaxamento), mas que, em ação combinatória com outras
unidades, é capaz dos mais diversos e complexos movimentos. E mais, essa
complexidade de movimentos obedece a padrões mecânicos de ação, com
seqüencialidade de causa e efeito, e dependem de um aprendizado
hierarquicamente organizado.
Já em sua ação cognitiva, em seu pensamento, não se conhecem ainda
os limites da potencialidade humana – apesar de todo o avanço da ciência
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cognitiva – mas sabe-se que seu padrão de funcionamento não é
centralizado, hierarquizado ou contínuo.
É importante, então, introduzir aqui o conceito de rizoma (DELEUZE;
GUATTARI, 1995), conceito este retirado da biologia e utilizado para
descrever uma forma de pensamento que desconsidera a centralização, a
hierarquia e a dicotomia, como prevalecentes, e que, de fato, incorpora o
múltiplo, a multiplicidade. Este conceito vai se mostrar útil à compreensão da
especificidade do fazer artístico do movimento que é a dança.
Caracterizado como um sistema a-centrado, não hierárquico, um rizoma
é um traçar de linhas que conectam bulbos de diferentes naturezas sem, no
entanto, definir pontos e posições. Esses bulbos não são unidades, mas
dimensões que, ao serem alteradas, mudam a natureza do próprio bulbo; são
multiplicidades. Opõe-se à árvore, estruturada, centralizada, enraizada.
Utilizando, então, a imagem da árvore-raiz em oposição ao rizoma-
canal, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995) afirmam que o pensamento não
é arborescente e que o cérebro não é uma matéria enraizada nem ramificada.
Apontam que o que se chama de dendritos, para eles equivocadamente, não
assegura uma conexão continuada dos neurônios.
A descontinuidade das células, o papel dos axônios, o
funcionamento das sinapses, a existência de microfendas
sinápticas, o salto de cada mensagem por cima destas fendas
fazem do cérebro uma multiplicidade que, no seu plano de
consistência ou em sua articulação, banha todo um sistema
probabilístico incerto, un certain nervous system. Muitas pessoas
têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é muito
mais uma erva do que uma árvore (DELEUZE; GUATTARI, 1995,
p.25, grifo dos autores).
É importante perceber, no entanto, que este mesmo cérebro que
funciona rizomaticamente, também concebe arborescências e centralizações.
E para exemplificar esse funcionamento, Deleuze e Guattari (1995, p. 25)
lembram que os neurólogos e os psicofisiólogos distinguem dois tipos de
memória, uma longa e uma curta (da ordem de um minuto), mas que a
diferença entre elas não é somente quantitativa: a memória curta é de tipo
rizoma, diagrama, enquanto a longa é arborescente e centralizada.
Importante, então, é ver que elas convivem, ou coabitam no ser humano, a
arborescência e o rizomático. E isso parece se dar desde as fases iniciais do
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desenvolvimento humano. Howard Gardner (1994) afirma que no
desenvolvimento do sistema nervoso, principalmente nos primeiros anos de
vida, mecanismos rigorosamente programados convivem com a flexibilidade
do próprio sistema. Esta flexibilidade, ou plasticidade, garante o
desenvolvimento do sistema nervoso mesmo diante de privações ou danos
que poderiam, a princípio, causar resultados graves.
Ainda que não se tenha aprofundado uma investigação dentro no
campo da ciência cognitiva, pelo exposto, a cognição parece manter essa
plasticidade do sistema nervoso em desenvolvimento, uma plasticidade que
se assemelha ao conceito filosófico de rizoma aqui abordado.
Em razão de seu padrão de funcionamento visto anteriormente, a ação
motora cotidiana se vale do modelo arborescente, centrado, dual, mesmo que
receba informações de multiplicidades, estas sim, rizomáticas (o cérebro e o
mundo). É dessa forma que o corpo consegue realizar as atividades da vida
diária, como, por exemplo, subir os degraus de uma escada. Isso não
significa dizer que o funcionamento do sistema motor seja simples. Gardner
(1994, p.164) lembra a complexidade desse funcionamento, que exige “a
coordenação de uma estonteante variedade de componentes neurais e
musculares de uma maneira altamente diferenciada e integrada”. Nesse
movimento, há um encadeamento determinado, hierarquizado, onde todo o
corpo se organiza – perceber o degrau e sua altura; transferir o peso do corpo
para uma perna, liberando a outra para galgar o degrau; estabilizar o tronco
garantindo equilíbrio durante o movimento, etc. Quando fala sobre a
coordenação motora, Maurice Merleau-Ponty (1999) afirma que os aspectos
visuais, táteis e motores não simplesmente se coordenam, mas se envolvem
uns aos outros e dão como equivalentes as opções possíveis de combinação
de movimento que resultarão na ação desejada. Este tipo de ação resulta no
automatismo de movimentos, apreendidos por repetição. O pensamento,
conforme visto acima, contrariamente, se faz a partir de um modelo rizomático
de funcionamento, que, no entanto, pode construir arborescências
necessárias – como no exemplo da memória longa. Percebe-se, então, que o
corpo age, em sua função motora, diferentemente de como pensa, no que diz
respeito aos seus modelos de funcionamento, mas assim o faz
simultaneamente, em ações-pensamentos indissociáveis de fato. A partir de
um comportamento rizomático do cérebro, o corpo se organiza, na última
instância das unidades motoras, de forma dual. Buscar as implicações desse
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funcionamento do corpo é o caminho inicial adotado aqui para se chegar à
compreensão do fazer contemporâneo da dança.
Retomando o que foi dito acima, a ação motora cotidiana desenvolve-se
a partir de ações baseadas na repetição, na assimilação de padrões a partir
dessa repetição. Estimulada por uma multiplicidade, ela reage de forma a
padronizar suas respostas. Assim se aprende a sentar, a levantar, a andar, a
correr, a andar de bicicleta, a dirigir automóvel, a digitar num teclado. E o
padrão assimilado “encarna-se” no ser humano e passa a fazer parte dele,
sendo utilizado em situações distintas das que o originou. A ação motriz
corporal cotidiana, baseada na automação por repetição, tende a padronizar o
movimento. Já ao nível cognitivo, a padronização não é uma única alternativa,
mas uma entre muitas possibilidades.
O pensamento aqui desenvolvido, no entanto, não se contenta com
essa análise. Ela deve ser expandida para que se possa incluir aí o fazer
artístico do movimento humano: a dança. Na contemporaneidade da dança
não há uma padronização única, e, assim como a cognição, também ela se
confronta com inúmeras possibilidades. É a multiplicidade de que fala o
rizoma.
Pode-se dizer, talvez sem muitos equívocos, que o conceito de rizoma
reúne e amplia idéias que foram sendo desenvolvidas também por outros
filósofos ao longo do século passado, e que se contrapunham ao pensamento
binário ou mesmo do tipo raiz-fasciculada, do qual se valeu de “bom grado”,
segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 14), a modernidade – para eles, a
lógica binária da dicotomia e das relações biunívocas é incapaz de
compreender a multiplicidade, e o sistema-radícula (ou raiz fasciculada),
apesar de ter eliminado a raiz principal e ter introduzido uma multiplicidade
imediata, não deixa de manter a unidade da raiz principal “como passada ou
por vir, como possível”.
Entre tais idéias, vale destacar o pensamento de Friedrich Nietzsche
(2001) sobre o caos como caráter geral do mundo, e que tem a importância
de mostrar o não-ordenamento previsível e esperado dos fenômenos deste.
Esse ordenamento, para Nietzsche, é a exceção. Também Norbert Wiener
(1954) aponta o caos do mundo, trazendo o conceito de entropia
ii
como
característica dele. O rizoma “definido por uma circulação de estados”
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 33), incorpora esse caos no sentido de que
também não concebe ordenamentos previsíveis.
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Ao apresentar “certas características aproximativas do rizoma”, Deleuze
e Guattari (1995, p.15) abordam, entre outras, a conexão e heterogeneidade,
características que garantem a qualquer ponto do rizoma o poder – e o dever
– de ser conectado a qualquer outro, diferentemente da árvore, que fixa um
ponto, uma ordem. Nessa conexão, cadeias semióticas de diferentes
naturezas são conectadas por também diferentes modos de codificação,
“colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também
estatutos de estados de coisas” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 15).
O modo de existir do ser humano parece que se dá, então, da seguinte
forma: um pensamento rizomático – ou um funcionamento cerebral que assim
se faz – interagindo com um mundo de multiplicidades, que se limita por
ações motoras funcionais finitas, hierarquizadas, centralizadas, repetitivas e
repetidoras, encadeadas, e que podem resultar numa ação/pensamento
também limitada e limitante. Há, no entanto, uma forma de mover-se que
desestabiliza essas limitações, que as redireciona, que as transforma em
novas possibilidades, que as expõe, que busca incorporar a multiplicidade.
Esta forma de mover-se é a dança.
O dançar depende da mesma estrutura neuromotora do corpo abordada
anteriormente, mas parece não querer limitar-se a ela. Diferentemente de
uma ação motora automática e repetitiva, dependente de um encadeamento e
uma seqüencialidade funcionalmente definidos, a dança contemporânea
busca novos modos do mover, ainda que partindo dessa mesma repetição e
encadeamento. Tentando clarear o que de fato é da ordem da complexidade,
pode-se retomar o exemplo da ação de subir uma escada, dado
anteriormente, a título de ilustração. Para a dança, o objetivo poderia não ser
o sucesso em se galgar os degraus sem desequilíbrios e quedas – o que
depende da execução seqüencial de cada pequeno movimento – mas poderia
ser o reverter mesmo essa seqüência, explorar as possibilidades de
adequação do corpo a essa inversão, instaurar novos percursos. A dança
estaria, então, assumindo a plasticidade e não a determinação de que se
falou anteriormente, uma plasticidade presente, também, na idéia de rizoma.
Para Helena Katz (1994), a dança é o pensamento do corpo. Em sua
tese, detalha o funcionamento do cérebro e sua forma de ação no corpo,
identificando a forma de produção do pensamento. Ela afirma que há dança
“quando o corpo se aplica a forma plástica que a produção do pensamento
circuita no cérebro” (KATZ, 1994, p. 77), podendo-se decifrar o movimento,
portanto, como a “matriz cinética do pensamento do corpo” (KATZ, 1994, p.
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84). Traçando um caminho de análise distinto, em sua fundamentação, do
traçado por Katz, chega-se a um ponto de convergência com a sua idéia,
neste trabalho. Concorda-se, aqui, com ela, e, trazendo para a análise o
conceito de rizoma, acredita-se poder afirmar que a dança contemporânea é
a forma rizomática da ação motora.
A dança é a forma rizomática da ação motora, mas é, também,
entendida aqui como linguagem. Esses conceitos – rizoma e linguagem – no
entanto, parecem ser, por definição, incompatíveis, o que torna necessário
investigá-los mais detalhadamente.
A linguagem parece não ser rizomática. Isto dentro de um conceito
específico de linguagem.
A lingüística, enquanto ciência da linguagem articulada (FERREIRA, A.,
1986, p. 1036), entende linguagem como um sistema fechado de signos.
Assim sendo, atribui a todas as formas de comunicação humanas o mesmo
modelo de codificação da linguagem das palavras – oral e escrita – que
assume como norma. Estabelece, então, como pressuposto, a existência de
unidades de significação que, organizadas hierarquicamente, constituem uma
mensagem destinada a transitar entre um emissor e um receptor, ambos
conhecedores dos códigos utilizados.
Um rizoma não funciona dessa maneira, como foi visto anteriormente.
Nele, cadeias semióticas de naturezas diversas são conectadas entre si por
modos de codificação também diversos, aglomerando atos lingüísticos, mas
também perceptivos, gestuais, cognitivos (DELEUZE; GUATTARI, 1995).
A linguagem, assim compreendida, não corresponde a uma forma
rizomática de construção do pensamento, nem, tão pouco, ao que aqui se
pretende como forma rizomática da ação motora – a dança. Estabelece-se
um impasse: ou se compreende a dança como linguagem, composta de
códigos hierarquicamente organizados, passível de uma gramaticalidade, ou
se pretende ser ela a forma rizomática da ação.
O impasse, no entanto, assim dicotomicamente estabelecido, afasta
possibilidades outras de entendimento do que seja a própria linguagem das
palavras, do que seja a linguagem em sentido lato, do que seja a arte, do que
seja a dança, do que seja o próprio rizoma.
Começando pela linguagem das palavras, a lingüística, atualmente, já
encontra outros caminhos de entendimento. Julia Kristeva (1974) aponta que
o conceito de escrita como différance desenvolvido por Jacques Derrida
permite pensar a língua como estrutura e movimento simultaneamente, pondo
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de lado o conceito clássico de estrutura; o signo é substituído pelo grama,
que “é o jogo sistemático das diferenças, das marcas das diferenças, do
espaçamento pelo qual os elementos se relacionam uns com os outros”
(DERRIDA apud KRISTEVA, 1974, p. 35). Para Kristeva, esse conceito de
grama desloca a dominância do sistema signo-sentido-conceito dentro da
lingüística e permite considerar, na linguagem, o que não se constitui signo-
sentido-conceito. Há, aqui, uma ampliação do próprio conceito de linguagem
das palavras, o que permite considerar, também, uma ampliação no sentido
lato da linguagem.
Não sendo escopo deste trabalho aprofundar a questão da linguística,
interessa entender esse sentido ampliado de linguagem, compreendida como
“demarcação, significação e comunicação”, e que possibilita o entendimento
de todas as práticas humanas como tipos de linguagem (KRISTEVA, 1974, p.
17). De fato, mesmo que determinadas práticas humanas não possuam todas
as três funções como precípuas, ou objetivo determinado, elas as têm como
parte do resultado de sua ação – como é o caso da arte
iii
. Acrescentando-se a
este pensamento, a ampliação dos próprios conceitos de demarcação,
significação e comunicação
iv
que as idéias de différance e rizoma
possibilitam, tem-se um conceito de linguagem também ampliado, o qual
norteou o desenvolvimento desta pesquisa. Nele cabem, então,
“demarcações, significações e comunicações” não rigidamente codificadas,
não universais, com limites e fronteiras ampliados e mutantes.
Também o conceito de rizoma deve ser retomado aqui no sentido de se
desfazer o impasse anteriormente mencionado. É preciso perceber que o
rizoma engloba, também, de certa maneira, o limite. O bulbo é um limite, com
a especificidade de que esse bulbo/limite não constitui uma unidade de
medida. Não há unidades de medida no rizoma, apenas multiplicidades ou
variedades de medidas (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 17). O conceito
grego de limite utilizado por Martin Heidegger (1977, p. 70) contribui, também,
para essa compreensão quando afirma que este “não restringe, antes traz
somente ao aparecer, o próprio presente enquanto produzido. [...] O limite
constituinte é o que repousa – a saber, na plenitude da mobilidade”. Também
Derrida (2002), quando apresenta o conceito de limitrofia
v
, fala de sua
intenção em não apagar o limite, mas em complicá-lo, em fazê-lo multiplicar-
se em suas figuras, em dobrá-lo. O limite, portanto, pode ser entendido como
uma demarcação que constitui os múltiplos presentes, mas que não implica
em unidades de medida ou valor, e que está em permanente mutação.
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Rizoma e linguagem admitem o limite, o limite constituinte. Momentos
de ordem que compõem o caos, mas que não constituem medidas. Assim é a
dança contemporânea: bulbos que nascem de uma capacidade funcional
limitada, mas que parece não querer restringir-se a ela. No movimento que se
desvincula da função utilitária, é o próprio movimento do corpo que aparece,
que é produzido e modificado a cada novo presente, complicando o limite,
criando múltiplos bulbos e transitando entre eles.
Desfaz-se o impasse, então. A dança pode ser compreendida como
forma rizomática da ação e também como linguagem, esta, no entanto, não
passível de gramaticalidade, como se verá a seguir.
Kristeva entende a gramática como parte da materialidade da língua.
Esta, apesar de ter a significação e comunicação baseadas numa rede de
diferenças, não seria uma pura idealidade, mas se realizaria “por e numa
matéria concreta e nas leis objectivas da sua organização” (KRISTEVA, 1974,
p. 37). Haveria, pois, uma materialidade dupla que engloba o aspecto fônico,
gestual ou gráfico da língua, mas também as leis que organizam os vários
conjuntos e subconjuntos da mesma – fonética, gramática, estilística etc. Para
Kristeva, essas leis refletem as relações do sujeito com o mundo, assim como
as relações que regulam a sociedade, ao mesmo tempo em que as
sobredeterminam. Aqui começa a se evidenciar a impossibilidade de
compreensão da arte, e, portanto, da dança enquanto linguagem a partir do
modelo lingüístico. Obviamente, também fazem parte da materialidade da
dança as relações do ser humano com a sociedade, uma vez que essas
relações estão impregnadas no e constituem o próprio corpo e seu
movimento (há, portanto, mais do que “leis” mecânicas). Este é o pensamento
primeiro que norteia este trabalho. No entanto, o modelo de pensamento
proposto por uma análise do tipo gramatical não atende às especificidades da
arte. Tal modelo se baseia em grupos e subgrupos de palavras, distintos e
independentes, que se relacionam de forma hierarquizada, normatizada,
regularizada, e que precisam assim ser compreendidos para que se possa
chegar a tais relações do ser humano com a sociedade.
A obra de arte não comporta esse tipo de compreensão, onde se efetue
uma segmentação e desarticulação do seu ser em estruturas hierarquizadas
e normatizadas no momento de sua fruição. Para Heidegger (1977), só se
percebe a obra de arte a partir dela mesma, em seu estar-em-si, em sua
totalidade. Ela não é constituída de uma materialidade à qual se atribui algo
de estético, e, talvez assim dicotomicamente compreendida, ser passível de
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uma decomposição em subpartes, mas é um acontecimento onde um
permanente combate
vi
marca sua essência.
A dança contemporânea, portanto, constitui-se linguagem – dentro do
conceito ampliado desta visto acima – mas não possui uma gramática, como
na língua, apesar de se valer, muitas vezes, de uma terminologia advinda
desta última (“vocabulário de movimento”, “frase de movimento”, etc.). A
fruição da dança se dá a partir de sua totalidade. Essa afirmação, no entanto,
não invalida a existência de uma demarcação, de uma estrutura de
construção da obra coreográfica, importante de ser reconhecida por quem a
cria e executa. Essa estrutura não configura uma unidade de medida, ou de
valor, um modelo. Ela é uma unidade de variedade, ou, os modelos são
tantos quantos são as próprias estruturas, únicas em suas aparições
rizomáticas. Voltando ao rizoma, os bulbos existem e são limitados, mas não
constituem modelos, são múltiplos. Células de movimento e estilos
coreográficos são estruturas dentro do fazer, mas não se constituem
gramática, a não ser que se pense em re-conceituar o termo, retirando dele o
que possui de normatização e codificação.
O desafio, então, para a prática artísitica contemporânea, é identificar,
dentro dessa multiplicidade rizomática que constitui o seu fazer, as
demarcações que geram significações e possíveis – mas não imprescindíveis
– comunicações. Identificar, portanto, seus limites, no sentido grego do termo,
enquanto linguagem. Uma tarefa, a princípio, paradoxal, mas que se baseia
no exercício efetivo da simultaneidade da estrutura e do movimento, do
diverso e do semelhante, da constante mobilidade, que ainda assim,
descansa pontualmente.
Referências bibliográficas
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Introdução: Rizoma. In: ______. Mil
platôs: Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: 34, v.1, 1995. p. 11-37.
DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo: UNESP, 2002.
FERREIRA, Aurélio B. de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.1986.
GARDNER, Howard. Estruturas da mente: A teoria das inteligências
múltiplas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: 70, 1977.
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KATZ, Helena. Um, dois, três: A dança é o pensamento do corpo. 1994.
Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica)- Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 1994.
KRISTEVA, Julia. História da linguagem. Lisboa: [s.n.], 1974.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.
NIETZSCHE, Friedrich W. Livro III. In: ______. A gaia ciência. São Paulo:
Companhia das Letras. 2001. p. 135-186.
RASCH, Philip J; BURKE, Roger K. Cinesiologia e anatomia aplicada. 5.
ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
TATIT, Luiz. Corpo na semiótica e nas artes. In: SILVA, I. Assis (Org). Corpo
e sentido: A escuta do sensível. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1996. p.195-208.
WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade: O uso humano de seres
humanos. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1954.
Currículo Resumido
Ana Carolina de S. S. D. Mendes, licenciada em Dança pela UFBA e bacharel
em Economia pela UESC, Ilhéus-BA, é Mestre em Arte pelo Instituo de Artes
da UnB, sob orientação da Profa. Dra. Maria Beatriz de Medeiros. Foi Profa.
Substituta do Depto. de Artes Cênicas deste mesmo Instituto, até
janeiro/2006. Desenvolve pesquisa sobre as relações entre dança e
tecnologias digitais.
Notas
i
Nome dado à estrutura de ação no sistema neuromotor. É composta por: “um grupo de fibras
musculares esqueléticas inervadas por um neurônio motor originado na medula espinhal”.
(RASCH; BURKE, 1987,
p.112
).
ii
A entropia é um conceito da física que mede a tendência à desordem de um sistema. Wiener
(1954, p. 32) aponta que o mundo é um sistema em que a entropia geral tende a aumentar,
mas que os organismos vivos, assim como as máquinas, representam “bolsões de entropia
decrescente”.
iii
Para Luiz Tatit (In SILVA, 1996, p. 206-207), a forma artística é “um rito de desaceleração da
linguagem”. Ela torna mais lenta a transposição do plano da expressão ao plano do conteúdo,
valorizando a primeira. É a eficácia nessa transposição que caracteriza as linguagens
“utilitárias”, a rápida passagem da expressão ao conteúdo, descartando a matéria da primeira.
“Tudo como se as práticas utilitárias precisassem renegar constantemente a fixação das
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modulações corporais em nome do êxito das articulações intelectivas”. Já nas linguagens
artísticas, o parâmetro de eficácia está justamente na preservação do plano de expressão, da
materialidade. Para Tatit, a forma artística se origina da necessidade de reconstituição e
perpetuação do corpo sensível na obra. A obra, então, revela-se, expressa-se, mais do que se
comunica.
iv
Quanto à demarcação, Deleuze e Guattari (1995, p. 24) dizem: “A demarcação não depende
aqui de análises teóricas que impliquem universais, mas de uma pragmática que compõe as
multiplicidades ou conjuntos de intensidades”. Para significação e comunicação, o conceito de
grama de Derrida visto acima constitui a ampliação de que se fala aqui.
v
“Deixemos a essa palavra um sentido ao mesmo tempo amplo e restrito: o que se avizinha
dos limites mas também o que alimenta, se mantém, se cria e se educa, se cultiva nas
margens do limite” (DERRIDA, 2002, p.57).
vi
Para Hidegger (1977, p. 33-51), a obra de arte pertence ao campo aberto por ela mesma, à
“clareira” que abre e na qual “concede às coisas seu rosto e aos homens a vista de si
mesmos”. Ao abrir esse campo, a obra instala um “mundo” – conjunto de significações – e
“produz a terra” – fisicalidade da matéria. É o “combate” entre “terra” e “mundo” que consiste o
“estar-em-si” da obra, e a forma desta é o “rasgão” do combate.

1 Comments:

At 3:01 PM, Anonymous Anônimo said...

O texto trabalho de Ana Carolina tenta uma dialética entre: "O limitado e infinito e o Ilimitado e finito.Para tanto vai buscar em Heidegger o conceito grego de limite para aproximálo da idéia de criatividade e assim a de Rizoma; seria melhor e mais proveitoso considerar a dança, teatro, artes que dependem dos movimentos motores, como sendo constituidas de uma virtualidade rizomática,ou a criatividade como o possível que se cria.

 

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