FILOSOFIA
O PRINCÍPIO DA RAZÃO DURANTE: O MOVIMENTO COMO SUBSTÂNCIA DAS FRONTEIRAS.Ciro Marcondes Filho
1. Fumaça e cristal
A história da civilização ocidental é a própria história da luta pela autoimposição do racionalismo como modo dominante de pensar. Em todo seu transcorrer ocorreu o conflito entre as visões de mundo que apostavam na estabilidade, na consolidação, na cristalização de fenômenos, processos e desen-volvimentos, e a perspectiva do movimento, da mutabilidade, da permanente transformação. De forma simplificada, a lógica das pedras contra a lógica das águas , em que, em um vasto período histórico o vivo teve de ceder lugar ao morto, o novo ao velho, a criação à repetição.Platão é o primeiro - como chamou atenção Nietzsche em sua "história de um erro" - a separar subjetividade de objetividade, apontando a existência de uma razão acima de nós. Seu modo de pensar e a ruptura entre o sujeito pensante e a coisa pensada vai encontrar seu desenvolvimento mais avançado nos pensadores pós-renascentistas, que apostam na matematização do real. É Descartes, dizendo que nada ocorre sem causa; o empirismo, afirmando que a alma é uma tábula rasa e vazia de caracteres; é Newton, o pai do positivismo moderno, assentando inamovivelmente as bases de uma teoria imobilista (demônio de Laplace) da não-mudança. A determinação com que Newton se impõe na ciência moderna será de tal monta que seus pressupostos de harmonia uni-versal e do movimento eternamente repetidos da mecânica celeste irão se es-tender até o século 20, quando os abalos da teoria do caos e da mecânica quân-tica imporão uma necessária relativização de seus pressupostos.A lógica das águas, que estava hibernando desde os pré-socráticos (He-ráclito) e Lao Tsu, vai encontrar então um primeiro renascimento na filosofia idealista alemã (o idealismo objetivo de Hegel), o primeiro a admitir, questio-nando a imutabilidade kant-newtoniana do real, que os processos são tão ou mais importantes que as estruturas.O conflito entre os mecânico-estatísticos e os termodinâmicos no campo da física marcará essa mudança de rumos, desta vez fora do âmbito da espe-culação filosófica. Poincaré, dizendo que a infecção dos sistemas é algo deles mesmos, nada de alienígena, questionará as bases de uma mecânica perfeccio-nista, cuja estabilidade se baseava necessariamente na interferência de fato-res estranhos ao sistema, que, não só o mantinham impune bem como expeliam para fora tudo o que fosse estranho. O paralelismo dessas concepções da ciên-cia física com as correntes conservadoras da sociedade da época não é casual.A lógica das águas firmará posição na importância do imprevisível, do probabilístico, do aleaório. Para os termodinâmicos, apoiados na Segunda Lei, o cosmos é um campo morno, com partículas sem sentido, sem nexo, sem forma , situação em que o caos vence a ordem.A física quântica, que se desenvolverá plenamente no século 20, será a responsável por algumas "heresias" teóricas que fizeram com que a mecânica celeste caísse no campo dos conhecimentos relativos e setoriais: o fato de va-riáveis ocultas determinarem o movimento dos elétrons, de propriedades on-dulatórias serem o caráter coletivo do movimento, de existir a dualidade onda-partícula.No campo epistemológico, o positivismo lógico é filho legítimo da lógica newtoniana. Ele estabelece para a ciência a intolerância teórica das disciplinas exatas da época, excluindo do campo da legitimidade científica tudo aquilo que não poderia ser observado e verificado de acordo com o princípio platônico de separação radical sujeito-objeto. Filosofia, psicologia, ciências humanas em ge-ral não eram ciências mas formas especulativas semelhantes aos saberes eso-téricos. Tais são os princípios que regeram o Círculo de Viena e seus principais componentes: Carnap, Russell, Wittgenstein.Mas Karl Popper lançará, na primeira metade do século 20, as primeiras contestações contundentes a esses princípios, ao afirmar que a observação di-reta também deturpa a investigação e que as evidências podem ser mutiladas. Uma ciência, para ele, se baseia em declarações falsificáveis, a saber, refutá-veis, e todo o edifício científico é provisório. Outra não é posição de Thomas Kuhn, ao estudar a lógica das revoluções científicas, afirmando que não se pode sair em busca de estruturas permanentes e que outros saberes podem ser igualmente legitimados na busca da descoberta e da inovação. Além destes, Paul Feyerabend reforça a posição, defendendo que não há método universal-mente válido.Estas críticas à epistemologia clássica e ao seu posicionamento, excluin-do do campo do conhecimento os saberes que não se submetiam a seus critéri-os lógicos, formais, empírico-racionais, vieram das primeiras formulações do caos (Poincaré) e da teoria quântica (Heisenberg, Bohr), assim como, posterio-remente, da teoria da incompletude (Gödel) e das novas lógicas que surgiram e que se firmaram na metade do século. A dependência hipersensível às condi-ções iniciais, a lógica da complexidade, da auto-organização e da autopoiese, entre outras, instituem modelos intermediários nas fissuras do determinismo clássico.O cristal cede lugar à fumaça , o movimento turbilhonário torna-se mais pertinente que o fluxo regular da água, o não-linear impõe-se e sobrepõe-se ao linear. O pêndulo, que era símbolo da exatidão matemática do movimento osci-latório regular, torna-se "exceção", parte menor e menos representativa dos fenômenos físicos; sua trajetória é menos atraente do que as trajetórias in-certas e aleatórias dos pêndulos de duplo plano . Opera-se, assim, uma virada radical no princípio da lógica científica: o que prevalece agora não é a busca das regularidades, das repetições, dos processos constantes, e, portanto, daquilo sobre o qual o homem se torna senhor na natureza. De agora em diante, os ci-entistas passam a ficar despertos aos processos e à sua liberdade, à indeter-minação, à imprevisibilidade, a tudo o que foge dos mecanismos uniformes e, desta forma, causam estranheza.
2. Ordem: uma herança teológica
O movimento, efetivamente, não pode ser excluído, sequer minimizado, na observação dos fenômenos físicos, sociais, mesmo subjetivos, pois todos os organismos vivos estão em movimento. Movimento sistêmico, caótico ou perió-dico, em tudo há uma força impulsionando, todos são sujeitos a maiores ou me-nores oscilações. Movimento é o mesmo que vida. Por isso os sistemas são estacionários, periódicos ou caóticos: alguns pa-ram, outros buscam órbitas estáveis, outros ainda seguem em direção a mudan-ças. Os sistemas regulares, que possuem força periódica e têm uma órbita es-tável, as têm descritas como atratores. Diferentemente, sistemas com traje-tórias diferentes têm órbitas nada estáveis, na forma de atratores estranhos.Os sistemas caóticos, contudo, significam para muitos cientistas formas que acabam por apresentar, num determinado momento, uma regularidade em forma de ordem. A corrente mais conservadora da teoria do caos acredita que sempre haja uma ordem escondida por trás dos processos caóticos e que ela necessariamente emergirá num determinado momento. A corrente dita "menos conservadora", a de Ilya Prigogine, acredita que a ordem é algo que se instala no sistema a partir de uma interveniência externa, por meio dos ruídos, que exigem que o sistema reaja e encontre sua nova forma, mais complexa, na sua própria auto-organização.Mas não estaria a busca dessa ordem novamente apelando nostalgica-mente para a localização de regularidades, de repetições, da ciência clássica? Não seria essa procura uma obsessão permanente do cientista - e do ser huma-no em geral - por algo que o assegure, que o tranqüilize? É sabido que o concei-to de ordem é uma criação humana e equivale à busca da noção de coerência, quando o que rege aparentemente a natureza - (como já afirmou a segunda lei da termodinâmica) - parece ser, ao contrário, uma alta tendência à desordem .
3. Precedência das ambigüidades
Todo esse ataque à ciência que se pretendia soberana, acima dos fenô-menos e subsumindo-os, conduziu a um repensar da própria atividade do inves-tigador diante da precedência dos fatos e dos fenômenos em relação a ele pró-prio. Levou a uma postura que - combinada à falência do humanismo, à crise dos ideais emancipatórios e a todos os mitos que envolveram o despertar científico do início do século 19 (progresso, evolução, razão, teleologia, história, homem) - se alinhava ao pensamento deste século, muito mais modesto em relação às ca-pacidades humanas diante das máquinas, muito mais crítico em relação aos des-envolvimentos da ciência e muito mais consciente das verdadeiras capacidades de pesquisa do ser humano. A crise do humanismo, inicialmente sinalizada por Nietzsche e posteri-ormente complementada pelo discurso de Heidegger contra a despersonaliza-ção da sociedade de massas, contra a técnica como "nova metafísica", repre-sentou uma posição menos soberana do observador e um olhar mais igualitário ao seu objeto de pesquisa. Propõe ao desenvolvimento científico desfeito dos mitos de controle, de dominação e de previsibilidade, que neste momento pre-cisa dar conta de outras lógicas e outras visões concorrendo pela investigação do mesmo fenômeno. Trata-se das ambigüidades que passam a fazer parte também da observação científica e que precisam ser consideradas se se quiser melhor conhecer o real.Inicialmente, a ruptura da relação de identidade que foi herdada da lógi-ca formal. Se nos ativermos à regra que "o ser é" e "o não-ser não é", estare-mos presos a processos mentais e de investigação que perdem todas as mani-festações marginais : os fenômenos que se comportam de uma forma, mas são efetivamente outra forma. Nem mesmo a lógica contraditória, de filiação he-geliana, apreende os novos processos, pois supõe necessariamente a exclusão de um dos dois elementos. Na lógica paradoxal, entretanto, é-se costumeira-mente colocado diante de situações que são e não são ao mesmo tempo. Isabe-lle Stengers fala da "oscilação das identidades" dos átomos, da ADN, dos neu-trinos como exemplificação de processos que se transformam, que são eles mesmos e seus opostos, conforme são observados, acompanhados, estudados. Trata-se, neste caso, da ambigüidade ontológica que objetos de investigação eventualmente assumem, desconcertando aqueles que buscam certezas e defi-nições unívocas.Mas também as medições podem nos enganar. Paul Watzlawick fala que nós vivemos constantemente em múltiplas realidades e que é um mito acreditar na existência de uma única delas. A física quântica apresenta os exemplos mais contundentes dessa impossibilidade de confiança nos nossos instrumentos de medição, ao afirmar que é a consciência dos homens que determina os fenôme-nos quânticos. A medição, diz ela, jamais é a mesma e um objeto tem diferen-tes medidas conforme a distância que se tome dele (exemplo da costa da In-glaterra, como dimensões fractais). Da mesma forma, não se pode medir duas qualidades ao mesmo tempo: se eu meço o tempo, a energia será necessaria-mente imprecisa. Mais além, físicos quânticos afirmam que a manifestação de um determinado fenômeno é absolutamente imprevisível até advir a interfe-rência do observador (caso do gato de Schrödinger e outros exemplos de su-perposição de estados quânticos). A intervenção do observador provoca o que eles chamam de "desmoronamento da função de onda": é o caso do olho ou do cérebro humano, que modifica a função de onda de um elétron observado. São exemplos de ambigüidades epistemológicas e observacionais que põem em xe-que qualquer ilusão de certeza a partir das medições em laboratório.Mas também toda uma metodologia pode sofrer dessas ambigüidades. Se colocada a opção entre reducionismo ou holismo cai-se fatalmente no chamado "dilema da dupla escolha", que força necessariamente a opção, excluindo do campo dos prováveis todo o espectro de situações intermediárias e mesmo so-brepostas. Acima falou-se do fato de a mecânica celeste newtoniana ser hoje válida apenas para grandes extensões; ela já não exclui mas obrigatoriamente convive com a mecânica quântica, a das partículas subatômicas, que, em princí-pio, a refuta. Assim, rechaçando o demônio de Laplace - segundo o qual, a par-tir da posição e da velocidade num determinado tempo de um certo fenômeno pode-se chegar a todas as previsões possíveis a respeito dele - somos levados, inevitavelmente, a aceitar outra lógica, a zen-budista (do tipo: "a coisa não pode ser expressa em palavras e não pode tampouco ser expressa sem pala-vras"), que considera a imprevisão e os processos indeterminados. A ambigüidade metodológica remete necessariamente às "proposições indecidíveis" de Kurt Gödel, segundo as quais nenhum sistema poderá ser ao mesmo tempo completo e consistente. Ou seja, os sistemas matemáticos não podem dar conta de todas as verdades matemáticas; haverá sempre um conjun-to de axiomas que estará fora de seu sistema. Transposto para o plano dos fe-nômenos sociais ou culturais, significa dizer que nenhum método, se quiser ser preciso (consistente) o poderá sê-lo se pretender ser capaz de explicar todas as coisas. Há limites, ou seja, planos que estão logicamente acima desses mes-mos métodos e só estes têm condições de explicá-lo.Finalmente, o desenvolvimento das ciências e as incapacidades episte-mológicas dos campos do saber - que pretendiam abarcar todo o conhecimento ou, pelo menos, estabelecer regras válidas para todo o saber - acabaram por reconhecer uma autonomia relativa de seus objetos, de tal forma a vê-los difi-cilmente apreensíveis em sua totalidade. Os objetos escapam de nossas mãos, são "fatiches", como diz Bruno Latour, fatos e fetiches ao mesmo tempo. Mes-mo Blaise Pascal dizia já que qualquer objeto que pensamos apreender escorre-ga-se entre nossos dedos em fuga eterna. Como exemplo da ambigüidade feno-menológica, os físicos se usam do exemplo dos elétrons, personagens estra-nhos, dos quais mesmo só se conhece o saltar de órbita em órbita, mas jamais eles próprios.
4. Um "quase-método"
Tudo leva a crer que diante de todas as trepidações da mudança cientí-fica e das ambigüidades haveria de se pensar um outro método. Mas como isso é possível se um método é algo sempre comprometido com uma visão de ciên-cia? Se não dá para dissociar forma da pesquisa de seu conteúdo? A isso se soma a dificuldade com o incerto, já apontada por Dietmar Kamper: as ciências humanas têm um dilema bastante específico, o de tentar explicar processos que em sua natureza são incontroláveis e autônomos.Na busca de uma direção para considerar essas transformações no esta-tuto da ciência, de sua lógica e de seu objeto, assim como de incorporar fatos extracientíficos na investigação, pode-se alistar algumas procedimentos de controle na busca de um "quase-método", a ser desenvolvido futuramente:Feyerabend fala da necessidade de um "vale tudo" na ciência, de uma forma assumida de "oportunismo", ao se referir ao fato de que a ciência não tem por que fazer cortes, restrições, seleções entre os campos do conheci-mento. Todos são a priori válidos e devem ser levados em consideração.Além disso, há que se romper as fronteiras dos campos do conhecimento. O pensamento deve ser nômade (Vilém Flusser), conceito que lembra o andari-lho de Nietzsche e essa liberade de poder transitar por todas as áreas sem preocupação de fronteiras e de limites territoriais do saber.Medawar diz que um cientista deve "contar histórias". Uma teoria cientí-fica é uma narrativa e nesse aspecto a ciência aproxima-se da ficção; é igual-mente um relato. Da mesma forma, a literatura pode igualmente dar apoio às ciências exatas ou sociais. Tem sido habitual, especialmente nos Estados Uni-dos, o uso de narrativas literárias para ilustrar, exemplificar e melhor esclare-cer conceitos da teoria do caos, da complexidade.A recusa das escolhas duais (Watzlawick), apontado anteriormente, a consideração de que o real é necessariamente múltiplo, complexo, um emara-nhado de diferentes tendências, fluxos, movimentos, histórias, etc. e a obser-vação de que os dados também podem nos manipular encerram o quadro de in-dicações para se pensar uma nova ciência e um novo procedimento de pesquisa.
5. O princípio da razão durante
Gilles Deleuze, ao discutir a possibilidade do sentido, fala que o sentido está "na fronteira", em vez de alturas e profundidades, importa a ele a super-fície de contato, o avesso que continua no direito. Trata-se da linha que separa as coisas das proposições sobre elas. Paul Valery, por sua vez, fala do movimen-to, daquilo que não é nem vida nem morte, mas está "entre eles".
Nem na vida, nem na morte: na fronteira e, para nós, a fronteira é sinô-nimo do movimento.
Nossa proposição teórica e epistemológica instala-se na confluência das duas posições, na captação do princípio que está no pensamento de Heráclito, na afirmação dos processos e na possibilidade de sua apreensão somente e en-quanto processos. Busca de reconhecimento do movimento, da instabilidade, da oscilação em seus múltiplos níveis. Não se trata de radiografar a lógica do mo-vimento, como tentou fazer o estruturalismo, congelando processos; trata-se antes de filmar, operar junto, dançar no compasso e na mesma velocidade. Do ponto de vista epistemológico tornou-se, assim, mais prudente admi-tir a incerteza estrutural, incerteza essa tomada menos como insegurança do que como espaço de possibilidades. A incerteza estrutural caracteriza um es-tado de permanente não-consolidação, de contínua vivacidade e flexibilidade para absorver nossos saberes e se reconstituir.Somos conscientes de que a razão durante não é descoberta nossa. Ela sempre existiu e foi produtora da inovação científica. O que ocorre é que os pesquisadores jamais deram atenção a esse momento, ao momento criativo da ciência. Alguns teóricos importantes, como Henri Atlan, atribuem grande im-portância ao "delírio" intelectual, àquelas especulações livres, criativas, inspi-radoras, que deram crédito às intuições e chegaram, assim, às teorias verda-deiras. Mas aqui ainda estamos no campo do conhecimento individual. A razão durante, em verdade, é o momento criativo que emana de um processo grupal, coletivo, da discussão científica. É o produzir espontâneo, inesperado, como a totalidade leibnizana (maior e diferente do que a soma das individualidades), que produz a partir da circulação de idéias, conceitos, suposições, argumentos dos mais diversos e que é impensável do ponto de vista isolado, do pesquisador em seu gabinete de trabalho. Este também pode ter - e normalmente tem - suas constatações, seus resultados, seus insights, mas neste caso se trata de deduções simples, produtos necessários do conjunto de fatos novos postos em contato com um equipamento teórico anterior. O conhecimento aqui, não obs-tante, não vem de ruídos instantâneos, emergentes, novos, da mística e da ma-gia do "estar em comum" e de suas amplas possibilidades de fazer emergir o inesperado.É na instabilidade, na imprevisilidade, no jogo com o incerto que se ins-tala esse tipo de "dependência hipersensível das condições iniciais". Os partici-pantes de um debate, juntos, lançam suas proposições, suas hipóteses, que atu-am como os projéteis em física, em que as interferências daqueles lançados pelos demais levam a derivações secundárias, terciárias das proposições, a no-vas sínteses, agora num campo do altamente inimaginado, tão inusitado como a trajetória do pêndulo de duplo plano.Mas há uma correlação entre o princípio da razão durante e os próprios processos sociais, que não se deixam captar senão no próprio momento de sua realização. Tudo o que é vivo é fluxo, são trocas internas, é uma força impulsi-onante, são as pequenas e grandes flutuações. Viver é necessariamente trocar com o ambiente externo e se readaptar internamente. A razão durante, assim, aplica-se àquilo que está pulsando, àquilo que é vivo. De certa forma, tem seu enunciado correlacionado ao "princípio do Mal", de Baudrillard, para quem todas as espécies de acontecimentos estão aí, imprevisíveis, e ao investigador não resta outra coisa senão "esperar que esses acontecimentos se deixem apa-nhar".O pensador francês está pensando na "inapreensibilidade do objeto", objetos que estão tão "metafisicamente longínquos" que só despertam fosfo-rescência nas telas e que, para captá-los, seria preciso fazer da própria teoria "uma coisa estranha" . Para nós, a teoria deve igualmente ceder ao objeto, aos seus caprichos e ao seu aparecimento fortuito. Mas, acima de tudo, trata-se de estar sentindo seu movimento, acompanhando seus passos e seu deslizar, pois crê-se que a essência está na vida, nesses lapsos fulgurantes de brilho e de fosforescência.Por isso, a razão durante é tudo isso: tanto o pensamento como os obje-to, captá-los em seu movimento vital, em sua luminosidade rara, em seus mo-mentos de especial sucesso. E isso só se consegue através da captação sincrô-nica do novo.
6. A extravida do "depois"
Toda ciência cristaliza-se em artigos, teses, documentos, livros. São formas de registro e todo registro é necessariamente um documento final, um testemunho de morte, pois ali a coisa já não vive. Já não há mais a pulsação, a instabilidade, a provisoriedade, o incerto que caracteriza todos os espaços da razão durante. Tem-se, ao contrário, a cristalização, a transformação em algo perene e imutável.Mas assim são também os filmes, as fitas gravadas, sem contar os tes-temunhos mais antigos da civilização, as obras da literatura, da filosofia, do teatro, da pintura, que apesar de serem registros ainda nos comovem. É preci-so, portanto, distinguir entre o que se entende aqui por "vivo".Há um vivo orgânico, marcado pela permanência da energia vital, pela força que move, pela transformação advinda do envelhecimento; é o mesmo vivo da razão durante, dos espaços intelectuais das discussões, dos fenômenos es-tranhos que se procura captar com nossas armadilhas epistemológicas, o vivo que nos surpreende, que se auto-organiza para aumentar seu nível de complexi-dade, o vivo da pulsação, do élan vital, o vivo tanto dos seres orgânicos (que atravessam todos os estágios da vida reprodutiva e mesmo cuja morte dá ori-gem ao aparecimento de outros seres vivos, num ciclo contínuo da natureza) como dos fenômenos físicos e sociais.Mas há uma extravida nos objetos mortos, nos processos de registro do ser vivo, nos sistemas estéticos e culturais de preservação. As obras de arte, a literatura, os registros em banda sonora, em películas, em arquivos digitais re-cuperam um plano da atividade vital e o perenizam: se trata não mais, eviden-temente, da dimensão inusitada, inesperada, supreendente. Aquela que marca o novo, o jamais tido ou conhecido antes. Se trata, isso sim, da dimensão que se aloja nesses objetos e sua capacidade metonímica de se transferir a nós, seres vivos. Há como que uma extravida, uma repercussão "fantasmagórica" de todos esses objetos sobre nós, simulando os efeitos da vitalidade real. Mas nem por isso são menos estimulantes, envolventes, transformadores. O único fato é que dos processos mortos só emanam sinais conhecidos, que se misturam com nos-sos sinais presentes e os transformam; funcionam, da mesma forma, como os repertórios dos cientistas antes de se envolverem em procedimentos da razão durante. Lhes falta, isso sim, o pôr em contato, o ato de mesclar esses sinais com sinais vivos num movimento único em que tudo se transforma.A grande vantagem das vivências puras, não-cristalizadas, não registra-das, é que elas ainda não são nada, não ganharam nome nem consagração, não viraram mitos nem clássicos, e por não serem coisa alguma guardam essa pure-za do ato livre, descomprometido, cambiável, jovial. O princípio da razão durante é a tentativa de trabalhar com o que não se instituiu, que guarda a naturalidade das vibrações, dos ventos, dos ecos perdidos, dos rumores desconcentrados: daquilo que a simbolização, as instituições, a classificação ainda não esterilizou, daquilo que não perdeu sua força, que dança por espaços não esquadrinhados, que é energia, tônus, vivacidade, animação, força vital. É a história construindo cada vez novas formas, novos estilos, novos temas mas que remetem, num alucinante jogo de alternâncias e recorrências, à recolocação das questões vitais: dominação, conflito, prazer, esperança e trabalho.(setembro de 2000)
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