segunda-feira, outubro 30, 2006

SOCIEDADE DO ESPETÁCULO



A OBRA DE ARTE NA ERA DA TÉCNICA
E DA ESTETIZAÇÃO DA POLÍTICA
por Adriana Schryver Kurtz
gui@cpovo.net
Resumo: Como poucos homens de seu tempo, Walter Benjamin pensou o cinema com um equilíbrio inusitado entre a paixão de um simples mortal pela magia das imagens em movimento e sua militante e utópica crença (como bom frankfurtiano não ortodoxo) no papel emancipatório das técnicas de reprodução. As esperanças de Benjamin foram frustradas pelo nazi-fascismo. A técnica, inclusive a do cinema foi usada como "um fetiche do holocausto". Numa época em que a sociedade está cada vez mais deslumbrada com os avanços da tecnologia e que a politica caminha inexoravelmente para "o triunfo da espetacularização", vale a pena retornar a algumas considerações de Benjamin sobre o papel da tecnologia (e o lugar da ética) no universo da arte (e indústria) do cinema......
"Manejar a técnica não como um fetiche do holocausto, mas como uma chave para a felicidade." Esta era a esperança que o filósofo frankfurtiano Walter Benjamin depositava em uma geração capaz de ver na guerra não mais um episódio mágico, mas sim a imagem do cotidiano. Com esta descoberta, os homens estariam aptos a superar tanto a guerra "eterna" invocada pelos novos alemães (fascistas) quanto a "última" guerra, com a qual se iludiam os pacifistas. E mais: poderiam transformá-la numa guerra civil – "mágica marxista, a única à altura de desfazer esse sinistro feitiço da guerra" (Benjamin, 1985a:72).
A utopia benjaminiana, expressa no ensaio Teorias do Fascismo Alemão, de 1930, mostrou-se inócua diante da crescente aceitação que a apologia da guerra ("misticismo bélico", dirá um sarcástico Benjamin) suscitava junto a sociedade germânica. O tipo de irracionalismo e idealismo que animava a publicação de Guerra e Guerreiros (1930), coletânea organizada por Ernst Jünger, representava um apelo imensamente maior do que a crítica militante de Walter Benjamin. Essa tendência não levaria apenas a mais uma "guerra de alcance planetário" (expressão entusiástica dos guerreiros-autores do livro): ela possibilitaria também o apoio irrestrito – por ação ou omissão – a um regime ditatorial insano e ao mais bárbaro projeto de extermínio massivo já registrado na história: o Holocausto judeu.
É mais do que sugestivo que o célebre ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1935/1936) tenha o cinema, a rigor, como seu objeto de análise. Cinco anos antes, Benjamin dedicava sua crítica à obra literária fascista – a coletânea organizada por Jünger. Sua aguda percepção da natureza "estetizante" do fascismo alcançaria em A Obra de Arte sua mais contundente expressão. A auto-alienação da humanidade, diria o filósofo, chegara a um ponto capaz de levá-la a viver "sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem" (e o que fez a Alemanha hitlerista, senão abraçar este tipo de vivência?). "Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte" (Benjamin, 1985b:196).
O comunismo - entre outras correntes políticas e ideológicas -, como sabemos, não respondeu à altura das exigências que os movimentos fascistas e o nazismo alemão exigiram de seus oponentes. O próprio Benjamim não deixou de ser uma vítima desta incapacidade. De uma forma ou de outra, os partidários da razão mostravam-se inaptos a perceber na sua totalidade a força e o alcance dos movimentos massivos engendrados pela direita em toda a Europa. Como observara Benjamin no texto que ainda hoje é um dos marcos da teoria do cinema, as metamorfoses no modo de exposição geradas pelas técnicas da reprodução tinham afetado também a política. Entrara em campo um novo processo de seleção – agora diante do aparelho técnico – do qual emergiam, "como vencedores, o campeão, o astro e o ditador" (ibidem:183). Pois este seria, de fato, o século dos astros e dos ditadores: e ambos se dirigiram às massas através do cinema.
"Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra", profetizara Walter Benjamin. A nova guerra mundial seria a oportunidade ideal para oferecer um objetivo aos grandes movimentos de massa, enquanto os meios técnicos de então fossem mobilizados em sua totalidade, "preservando as relações de produção existentes" (ibid.:195). Pois a guerra, já antecipada, não se fez demorar. Ela significou para a indústria do cinema o mais efetivo impulso em seu desenvolvimento. As grandes fábricas de sonhos nasceram sob o signo da guerra, florescendo ao longo dos dois conflitos mundiais, conforme mostrou Sigfried Kracauer no clássico De Caligari a Hitler. Uma História Psicológica do Cinema Alemão (1988). Mesmo o desenvolvimento estético do cinema – a especificidade de sua linguagem – nota Paul Virilio - deve sua maturidade às lições deixadas pelo uso da parafernália armamentista.
"O cinema entra para a categoria das armas a partir do momento em que está apto a criar a surpresa técnica ou psicológica", já que não existe guerra sem representação ou arma sofisticada sem mistificação psicológica diz Virilio em Guerra e Cinema (1993:12), bela reflexão sobre a história da relação do medium por excelência do século XX com os avanços técnicos e científicos militares. O cinema esclareceria, assim, porque "abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir, antes da morte, o pânico da morte" (idem). Com o que Goebbels concordaria plenamente ao proferir seu célebre discurso, no Congresso do Partido em Nuremberg, em 1934, imortalizado nas imagens de O Triunfo da Vontade (1936), pela cineasta Leni Riefenstahl: "O poder baseado em armas pode ser uma coisa boa; é porém, melhor e mais gratificante conquistar o coração de um povo e mantê-lo" (Goebbels apud Kracauer, 1988:191).
Nem mesmo o chamado "Programa de Eutanásia" – bem como o Holocausto judeu - prescindiu das imagens em movimento. Mesmo obras-primas expressionistas promoveram bem mais do que familiaridade com o que Kracauer chamou de "procissão de déspotas": elas já expressavam o típico preconceito contra as massas, de forma geral, e contra os judeus, em particular, como em O Golem, Como Ele Veio ao Mundo (1920), de Paul Wegener. Documentários abomináveis de contrapropaganda, como O Führer Doa uma Cidade aos Judeus (1944), procuravam confundir a opinião pública a respeito do genocídio, enquanto Vítimas do Passado (1937) invocava o mais rasteiro darwinismo como justificativa para estancar a propagação dos "imbecis". Obras ficcionais como O Judeu Süss e "documentários" como O Eterno Judeu repisavam, em 1940, a acusação quanto à natureza intrinsecamente pervertida do povo judeu, preparando a aceitação pública para a deportação em massa, o confinamento e a matança.
Pode ser irônico que uma das últimas providências de Goebbels, à frente de um Terceiro Reich já moribundo, tenha sido a realização de um grandioso espetáculo cinematográfico, Kolberg – um drama histórico sobre a resistência dos bravos soldados alemães, numericamente inferiores, ao exército de Napoleão. Em abril de 1945, Kolberg é finalmente exibido para um seleto grupo de funcionários do ministério. O filme não seria exibido ao público alemão pois Berlim ardia sob incessante bombardeio aliado.
Conta a lenda que, ao final da projeção, Goebbels faria uma insólita espécie de "previsão": em 100 anos, uma obra semelhante a Kolberg seria realizada, enfocando os feitos "heróicos" do Nacional-Socialismo. "Cavalheiros, vocês não querem fazer parte desse filme? Posso assegurar-lhes que será belo e edificante". O fechamento não deixa de ser surpreendente. Estaria o Ministro da Propaganda imaginando-se em um papel que – posteriormente – seria interpretado nas telas? É o que sugere sua afirmação final: "E a partir desta perspectiva é que vale a pena resistir. Resistam! E daqui a cem anos, o público não irá assobiar e vaiar quando vocês aparecerem na tela".
"Em plena derrota militar, Goebbels queria fazer deste filme o maior de todos os tempos, uma epopéia que ultrapasse, por seu fausto, as mais suntuosas produções americanas". Assim, mais uma vez, a Alemanha cedia à obsessão pelo "arsenal de percepção americano" (Virilio, 1993:16) – o cinema hollywoodiano que tanto fascinava o Führer e seu todo poderoso Ministro da Propaganda e da "Ilustração do Povo" ("patrono" do cinema sob o Terceiro Reich).
Ao contrário do que sonhara Benjamin, a técnica do cinema, como evidenciou a história, seria manejada sobretudo como um fetiche do holocausto. Também as pretensões e/ou esperanças do Ministro da Propaganda de Adolf Hitler mostrar-se-iam fantasiosas. Para as gerações nascidas após a II Grande Guerra e a Shoah (com maior força à medida que estas mesmas gerações se distanciavam, temporalmente, dos fatos ocorridos) a história seria – em grande parte – narrada sob a ótica dos vencedores: milhões de pessoas em todo o mundo testemunharam – como espectadores – os terríveis acontecimentos do século dos astros e ditadores, sob a ótica da indústria do cinema.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
1. BENJAMIN, Walter. Teorias do fascimo alemão. Sobre a coletânea Guerra e Guerreiros, editada por Ernst Jünger. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985a. p. 61-72. v. 1.
2. ___. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985b. p. 165-196. v. 1
3. KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
4. VIRILIO, Paul . Guerra e cinema. São Paulo: Página Aberta, 1993.
Filmografia
ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO. Peter Cohen (dir.). Suécia: Peter Cohen et al., Swedish Film Institute, 1989. 1 filme (119 min.), son., col. e P&B. 35mm. Título original: Architektur des Untergangs. Leg. português.
LENI RIEFENSTAHL. A Deusa Imperfeita. Ray Müller (dir.). Alemanha/Bélgica: [s/prod.], [s/distr.], 1993. 1 filme (181 min.), son., col. 35mm. Título original: Die Macht der Bilder. Leg. português.
O GOLEM, COMO ELE VEIO AO MUNDO. Paul Wegener (dir.). Alemanha, 1920. 1 filme (1.500m), mudo, P&B. 35mm. Título original: Der Golem.
O PODER E A MÍDIA – Goebbels: Mestre da Propaganda. Laurence Rees (dir.). Londres: BBC, [s./d.]. 1 filme (documentário), son., col. Dublado.
O TRIUNFO DA VONTADE. Leni Riefenstahl (dir.). Alemanha: NSDAP, [s/distr.], 1935-36. 1 filme (120 min.), son. P&B. 35mm. Título original: Der Triumph des Willens. Leg. português.
PRELÚDIO DE UMA GUERRA. Frank Capra (dir.). EUA: Ministério da Guerra dos Estados Unidos da América, 1942. 1 filme (54 min.), son., P&B. 35mm. Dublado.

1 Comments:

At 11:40 PM, Anonymous Anônimo said...

Antes do comentário gostaria de dizer que o quadro em fragmentos que vai ao infinito é de Vitória H.de Carvalho.

 

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CINEMA

A arma, o olho e o espetáculoPor Ilana Feldman

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Em “Guerra e cinema”, lançado no Brasil, o pensador francês Paul Virilio investiga a relação entre logística militar e dispositivos visuais
“Uma guerra não é para ser ganha, mas para ser eternizada”, escreveu George Orwell em “1984”, indicando a seminal relação entre a guerra e a sua divulgação e representação. A eternização a que se referia Orwell é assim garantida pela lógica do espetáculo que, desde a Primeira Guerra Mundial, rege a ordenação visual dos conflitos, quando a presença do visor telescópico da câmera a bordo dos aviões de reconhecimento prefigurou uma mutação das percepções e sensibilidades. A partir desse momento, uma des-realização crescente do engajamento militar se fará notar, “quando a imagem se prepara para triunfar sobre o objeto, o tempo sobre o espaço, em uma guerra industrial na qual a representação dos acontecimentos domina a apresentação dos fatos”.
Em “Guerra e cinema” (lançado agora pela Boitempo Editorial), o arquiteto e urbanista francês Paul Virilio lança-se nessa ousada empreitada: investigar historicamente a íntima relação entre a logística da guerra e o desenvolvimento de dispositivos de visualização a partir da cronofotografia
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1 e do cinematógrafo, tendo como foco principal o resultado do acoplamento dessas duas tecnologias, guerra e cinema, na percepção e na capacidade de afetação dos corpos.
Repleto de informações históricas descritas como se fossem detalhes picantes de uma história assombrosa, a nossa, o livro é o trabalho de alguém que conheceu a guerra e seus aparatos tecnológicos de perto. Como um “war-baby” durante a ocupação nazista na França, Virilio testemunhou a capacidade de mobilização e de alteração da percepção provocada pelo impacto psíquico das armas. Para ele, “não existe arma sofisticada sem mistificação psicológica”, assim como não existe guerra sem representação, já que além de instrumentos de destruição, elas são também “instrumentos de percepção”, ou seja, estimuladores que provocam fenômenos físico-químicos e neurológicos sobre os órgãos do sentido.
É por isso que, para Virilio, “a história das batalhas é, antes de mais nada, a história da metamorfose de seus campos de percepção”. Ou seja, a guerra consiste menos em conquistar vitórias materiais do que em apoderar-se da imaterialidade dos campos de percepção. Como escreveu Gustave Le Bon, autor de “Psicologia das massas”, no início do século passado, “a guerra não atinge somente a vida material dos povos, mas também seus pensamentos... e aqui voltamos a esta noção fundamental: não é o racional que conduz o mundo, mas as forças de origem afetiva, mítica ou coletiva que conduzem os homens. As forças imateriais são as verdadeiras condutoras dos combates”.
Mas quais seriam essas forças imateriais? Ou, ao menos, a partir do que elas seriam produzidas? O trabalho de Virilio vai justamente no sentido de associar a idéia de imaterialidade não só ao campo da percepção, como à produção de imaginário, a partir da logística espetacular que a guerra solicita, pois ela “não pode ser jamais separada do espetáculo mágico, já que sua principal finalidade é justamente a produção deste espetáculo: abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir-lhes, antes da morte, o pavor da morte”.
Desse modo, “Guerra e cinema” (publicado originalmente em 1984, com o nome de “Guerra e cinema: Logística da percepção”) tratará de defender a existência de uma osmose entre guerra e cinema industriais. Virilio não analisa filmes “sobre” guerras, que contenham temáticas bélicas ou cenas de batalhas, mas, antes, busca compreender uma outra categoria, bastante ampla, a de filmes “de” guerra, nos quais a belicosidade está articulada na própria forma, na linguagem, “uma vez que o cinema entra para a categoria das armas a partir do momento em que está apto a criar a surpresa técnica ou psicológica”.
E de que ordem seria essa surpresa? Neste ponto, Virilio se abstém e apenas indica que “os cineastas vão oferecer esses efeitos tecnológicos ao grande público como um espetáculo inédito, um prolongamento da guerra e de suas destruições morfológicas”. No entanto, seria interessante explicitar, na lacuna deixada por Virilio, que o cinema de guerra é todo e qualquer cinema sinestésico, que afeta o corpo do espectador com estímulos sensórios-motores, efeitos físico-químicos, fazendo uso de choques perceptivos –e aqui não há como não lembrar da “estética do choque” proposta por Walter Benjamin a partir da obra de Baudelaire- e de toda sorte de intensificações e explosões, sejam elas visuais, sonoras ou dramáticas, ocorram em melodramas, tragédias ou filmes policiais.
Sendo assim, não interessam os gêneros, os conteúdos, mas a linguagem e seus artifícios, que, através do corte, o elemento bélico da filmagem e da montagem –associado pelo crítico André Bazin à idéia de morte, de interrupção-, organizará ou bombardeará a percepção do espectador.
Fascinado e com a percepção consciente e crítica estilhaçada pela velocidade, o espectador é conduzido à hipnose e ao delírio cinemático –e aqui caberia lembrar que os primeiros produtos dopantes foram produzidos para suprir as necessidades dos pilotos durante a Guerra do Vietnã, um combate que, segundo Virilio, não distinguia o real do imaginário.
Não por acaso, a grande contribuição ao cinema trazida por “Apocalypse now”, de Francis Ford Coppola (1979) -considerado por Virilio, sem qualquer explicação, uma “semidecepção”-, foi a expressão, através da linguagem cinematográfica, do estado de alucinação e delírio em que se encontravam os soldados americanos no Vietnã. O filme acaba alterando a própria percepção dos espectadores que, a partir de então, teriam uma experiência sensorial mais próxima da desrealização cinemática da realidade, bem como da “transformação da guerra na terceira dimensão do cinema”.
Nesse sentido, também em “Farenheit 11.9”, de Michael Moore (2004), encontramos duas passagens antológicas, a despeito de sua montagem de eventos espetaculares. A primeira delas diz respeito à propaganda das Forças Armadas, veiculada na televisão americana, para o recrutamento de jovens, quando são utilizados procedimentos ficcionais e apelativos, como uma animação em cores vibrantes e a tradicional linguagem fática da publicidade. Aqui, vê-se uma osmose entre o chamado oficial à prontidão da guerra e a propaganda de uma espécie de game do “Comandos em ação”.
Em um segundo momento, “a transformação da guerra na terceira dimensão do cinema”, a que se refere Virilio, está cristalizada na cena em que soldados americanos, já no Iraque, admitem entusiasmadamente que, enquanto atiram em seus inimigos com os olhos acoplados em armas no interior de seus tanques, estão com os ouvidos plugados em fones, escutando um rock que diz: “Burn, motherfuckers, burn!”, como se através da trilha sonora encenassem a própria realidade.
Tal encenação -não no sentido da falsificação ou ilusão, mas no sentido “teatralizado” das execuções- também se faz presente na atual mise-en-scène do terror e em seu subproduto, os vídeos-terroristas, quando se percebe uma clara consciência de cena e de público-alvo por parte dos terroristas-diretores. “O terrorismo”, já nos alertava Virilio, “lembra-nos insidiosamente que a guerra é um sintoma delirante que funciona na meia-luz do transe”.
O casamento entre a arma e o olho
Considerado o primeiro western da história do cinema, “The great train robery”, dirigido por Edwin Porter em 1903, apresenta, ao final, um plano-próximo de um personagem (o ladrão-caubói) que, olhando para a câmera, atira nos olhos do espectador.
Anos antes, por volta de 1882, Étienne-Jules Marey, médico fisiologista francês, pesquisando a decomposição do movimento, inventou o fuzil cronofotográfico, colocando a cronofotografia a serviço da pesquisa militar sobre o movimento. Marey, defende Virilio, foi um elo essencial entre a arma automática e a fotografia instantânea, pois seu fuzil cronofotográfico não só precedeu a câmera dos irmãos Lumière, como também era descendente direto das armas de tambor e cilindro giratório. Após a morte de Marey, em 1904, seu assistente, Georges Demeny, então membro da comissão de elaboração do manual de infantaria, deu continuidade às pesquisas sobre a utilidade da cronofotografia na dosagem dos esforços do combatente.
Se, no final do século XIX, as pesquisas científicas acerca de novos aparatos ópticos, motivadas por fins médicos e militares, acabaram por divulgá-los como entretenimento para o olhar nas feiras populares, contribuindo para a emergência de um novo regime de percepção baseado em um novo observador, as pesquisas na área da aviação também possibilitaram que, a partir de 1914, o avião deixasse de ser um simples meio de voar, de bater recordes, para tornar-se um modo de ver ou, talvez, segundo Virilio, “o último modo de ver”. Ao contrário do que geralmente se pensa, a aviação de reconhecimento está na origem da arma aérea.
Desde sua origem, o campo de batalha é um campo de percepção e a máquina de guerra um instrumento de representação, pois a mão do piloto dispara a câmera ao mesmo tempo em que aciona a arma. Assim, “para o homem de guerra a função da arma é a função do olho”. É normal, portanto, que o violento rompimento cinemático do continuum espacial -deflagrado pela arma aérea- e os fulminantes progressos das tecnologias de guerra tenham literalmente explodido, a partir de 1914, a antiga visão homogênea e engendrado a heterogeneidade dos campos de percepção.
Com a velocidade de penetração da guerra e a sua transmutação de um complexo militar-industrial (que Benjamin chamaria de “complexo místico-científico”) em um complexo comunicacional-informacional, logo se intensifica a criação de uma indústria de massa que trata o realismo do mundo pela aceleração cinemática, onde o cinema baseado no desarranjo psicotrópico e na perturbação sensorial torna-se o desenho de uma nova geometria da visão.
Tal aceleração cinemática, porém, já comparecia nos idos da narrativa clássica. Em 1930, Duhamel, citado por Benjamin em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, dizia: “Já não posso mais pensar no que quero. As imagens em movimento substituíram meus pensamentos”.
Muitas décadas mais tarde, em “L’écran du désert: chroniques de la guerre” (A tela do deserto: crônicas da guerra), lançado apenas na França em 1991, Virilio desenvolveria ainda mais o tema, tendo como alvo a transmutação da aceleração cinemática na imediatez do tempo dito real: “Não há política possível na escala da velocidade da luz. A política é o tempo da reflexão. Hoje não temos mais tempo para refletir, as coisas que vemos já aconteceram. E é necessário reagir imediatamente. Uma política do tempo real é possível? Uma política autoritária, sim. Quando não há mais tempo para partilhar, o que partilhamos? Emoções”
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2.
Os “alvos nervosos” que nos tornamos
Sem nunca perder do horizonte a relação entre guerra e tecnologia, Virilio irá apostar, desde “Guerra e cinema”, na idéia de que todos nós, espectadores, somos “alvos nervosos” em potencial: corpos afetados e configurados por determinadas relações com as tecnologias de imagem e com as biotecnologias; corpos atravessados pela aceleração dos fluxos e por desejos de hiperestimulação e excitação; corpos turbinados, “bombados” e bombardeados.
Em “Do super-homem ao homem superexcitado”, texto publicado em “A arte do motor”, lançado aqui em 1996, Virilio lança como epígrafe a sugestiva frase de Nietzsche: “O que mais importa ao homem moderno não é mais o prazer ou o desprazer, mas estar excitado”, pensamento que já apontava para uma necessidade de constantes estimulações nervosas desde fins do século XIX.
Para Virilio, foi exatamente essa demanda por excitação que, junto com a precisão do tiro-câmera na origem do cinema, criou pânico entre os espectadores durante as “demonstrações de movimento” dos irmãos Lumière, com a famosa chegada do trem na estação de Ciotat. Segundo descrições da época, os espectadores tinham a sensação de poderem ser esmagados pelo trem, não porque fossem mais ingênuos, mas porque, já naquela época, havia um pacto em construção de crença na imagem cinemática.
Esse tipo de crença, que provinha das impressões de velocidade buscadas nos parques de diversões e trem-fantasmas desde a emergência da cultura das sensações em fins do século XIX, não desapareceu, pois a familiaridade tornava, segundo Virilio, o medo ainda mais pernicioso. A partir do momento em que aprende a controlar suas reações nervosas, o público começa a ver a morte como algo extremamente excitante.[BIO] [/XBIO]-->
1 - Cronofotografia: Método de análise do movimento por meio de fotografias tiradas sucessivamente com intervalos iguais, considerado a base epistemológica a partir da qual pôde se desenvolver o cinematógrafo.
2 - Trecho citado e traduzido por Maria Cristina Franco Ferraz, no artigo “Guerra, televisão e superexcitação dos corpos: ensaio de reflexão acerca dos atentados de 11 de setembro de 2001”. In: Sergio Porto (org.). “A incompreensão das diferenças: 11 de setembro em Nova York”. Brasília, 2002, p. 177-189.

segunda-feira, outubro 23, 2006

Pausa Para A América Latina!

A DÍVIDA EXTERNA DA EUROPA

Índio surpreende chefes na reunião de cúpulaCom linguagem simples, que era transmitida em tradução simultânea para mais de uma centena de chefes de estado e demais dignatários da Comunidade Européia, o discurso do Cacique Guaicaipuro Cuatemoc provocou um silêncio inquietante na audiência quando falou:
"Aqui estou eu, descendente dos que povoaram a América há 40 mil anos, para encontrar os que a encontraram só há 500 anos.
O irmão europeu da aduana me pediu um papel escrito, um visto, para poder descobrir os que me descobriram. O irmão financista europeu me pede o pagamento, com juros, de uma divida contraída por um Judas, a quem nunca autorizei que me vendesse.
Outro irmão europeu, um rábula, me explica que toda dívida se paga com juros, mesmo que para isso sejam vendidos seres humanos e países inteiros sem pedir-lhes consentimento.
Eu também posso reclamar pagamento, também posso reclamar juros.
Consta no Arquivo das Índias. Papel sobre papel, recibo sobre recibo, assinatura sobre assinatura que somente entre os anos 1503 e 1660 chegaram a São Lucas de Barrameda 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata provenientes da América
Terá sido isso um saque?
Não acredito porque seria pensar que os irmãos cristãos faltaram ao Sétimo Mandamento!
Teria sido espoliação? Guarda-me Tanatzin de me convencer que os europeus, como Caim, matam e negam o sangue do irmão
Teria sido genocídio? Isso seria dar crédito aos caluniadores, como Bartolomeu de Las Casas que qualificam o encontro de "destruição da Índias" ou Arturo Uslar Pietri, que afirma que a arrancada do capitalismo e a atual civilização européia se devem à inundação de metais preciosos retirados das Américas!
Não, esses 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata foram o primeiro de outros empréstimos amigáveis da América destinados ao desenvolvimento da Europa. O contrário disso seria presumir a a existência de crimes de guerra, o que daria direito a exigir não apenas a devolução, mas indenização por perdas e danos.
Eu, Guaicaipuro Cuatémoc, prefiro pensar na hipótese menos ofensiva.
Tão fabulosa exportação de capitais não foi mais do que o início de um plano "Marshal-tezuma", para garantir a reconstrução da Europa arruinada por suas deploráveis guerras contra os muçulmanos, criadores da álgebra, da poligamia, do banho diário e outras conquistas da civilização.
Por isso, ao celebrarmos o Quinto Centenário desse Empréstimo, poderemos nos perguntar: Os irmãos europeus fizeram uso racional, responsável ou pelo menos produtivo desses recursos tão generosamente adiantados pelo Fundo Indo-americano Internacional?
É com pesar que dizemos não.
No aspecto estratégico, o dilapidaram nas batalhas de Lepanto, em armadas invencíveis, em terceiros reichs e outras formas de extermínio mútuo, sem um outro destino a não ser terminar ocupados pelas tropas gringas da OTAN, como um Panamá, mas sem o canal.
No aspecto financeiro foram incapazes, depois de uma moratória de 500 anos, tanto de amortizar o capital e seus juros, quanto se tornarem independentes das rendas liquidas, das matérias primas e da energia barata que lhes exporta e provê todo o Terceiro Mundo.
Este quadro corrobora a afirmação de Milton Friedman, segundo a qual uma economia subsidiada jamais pode funcionar. E nos obriga a reclamar-lhes, para o seu próprio bem, o pagamento do capital e dos juros que, tão generosamente temos demorado todos estes séculos para cobrar.
Ao dizer isto, esclarecemos que não nos rebaixaremos a cobrar de nossos irmãos europeus, as mesmas vis e sanguinárias taxas de 20% e até 30% de juros que os irmãos europeus cobram aos povos do Terceiro Mundo. Nos limitaremos a exigir a devolução dos metais preciosos emprestados, acrescidos de um módico juro fixo de 10%, acumulado apenas durante os últimos 300 anos.
Sobre esta base, e aplicando a fórmula européia de juros compostos, informamos aos descobridores que eles nos devem 180 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata, ambas as cifras elevadas à potência de 300. Isso quer dizer um número para cuja expressão total seriam precisos mais de 300 cifras, e que supera amplamente o peso total do planeta Terra.
Muito peso em ouro e prata! Quanto pesariam calculados em sangue?
Admitir que a Europa, em meio milênio, não conseguiu gerar riquezas suficientes para pagar esses módicos juros seria como admitir seu absoluto fracasso financeiro e/ou a demêncial irracionalidade dos pressupostos do capitalismo.
Tais questões metafísicas, desde já, não nos inquietam aos índo-americanos.Porém exigimos a assinatura de uma carta de intenções que discipline aos povos devedores do Velho Continentes e que os obrigue a cumpri-la, sob pena de uma privatização ou conversão da Europa, de forma que lhes permita nos entregá-la inteira como primeira prestação da dívida histórica."Quando terminou seu discurso diante dos Chefes de Estado da Comunidade Europeia, o Cacique Guaicaipuro Cuatemoc, nem sabia que estava expondo uma tese de Direito Internacional para determinar a Verdadeira Dívida Externa.
Agora só resta que algum Governo Latino Americano tenha a dignidade suficiente para impor seus direitos perante os Tribunais Internacionais. Os europeus ali reunidos devem ter percebido que nesse tempo de globalização e tecnologia, índio já não quer mais apito, quer que lhe paguem o devido, com juros.
Se tem amigos honestos, faça-os conhecer este discurso. Eles tambem têm sido vendidos.

sábado, outubro 21, 2006

Sobre A Ciência.


ISABELLE STENGERS
A invenção das ciências modernas
Tradução de Max Altman. São Paulo: Editora 34, 2002. 208 p.
(Coleção Trans)
ADRIANA PIVA
Programa de Pós-graduação
Faculdade de Educação – UFMG
Desde seu início, as ciências teórico-experimentais vêm buscando afirmar sua especificidade e,
muitas vezes, sua superioridade, como forma de conhecimento. O século XX foi marcado por tentativas
de caracterização dessa singularidade, por meio principalmente dos estudos epistemológicos da tradição
demarcacionista. No entanto, nas últimas décadas dos novecentos surgiu uma crítica diferenciada que,
sob influência dos estudos culturais e situada nos domínios da sociologia da ciência, no lugar de buscar
a especificidade das ciências teórico-experimentais a elimina. A “denúncia” de que a atividade científica
estaria tão ligada ao poder, e aos interesses da política corriqueira como quaisquer outras práticas sociais,
parece ter ferido uma crença que nem mesmo as críticas radicais da ciência como tecnociência ou do
feminismo puderam alcançar.
Isabelle Stengers – filósofa e historiadora das ciências, conhecida no Brasil por sua obra escrita em
parceria com Ilya Prigogine, A nova aliança (UnB, 1997) –, contudo, em seu livro A invenção das ciências
modernas, parece espantar-se com tal escândalo, ou melhor, com a indiferença dos sociólogos da ciência
diante da reação indignada daqueles que são os seu “objeto” de análise. A abordagem sociológica coli-
de de frente com a concepção de ciência dos próprios cientistas e não se pergunta que implicações isso
pode ter para a atividade científica, ou ainda por que é tão importante para os cientistas preservar a noção
de autonomia. Para Stengers, essa indiferença dos sociólogos só pode ser devida a uma crença, também
deles, de que seu saber aproxima-os da verdade, dá-lhes o poder de julgar aqueles que estão submeti-
dos a sua análise. Também os sociólogos agem “em nome da ciência”, da verdade, mas não reconhecem
esta possibilidade aos cientistas experimentais.
Procurando, então, distanciar-se tanto dos que acreditam, quanto dos que combatem a idéia de
uma singularidade das ciências teórico-experimentais no interior da velha tensão entre saber e poder,
Stengers opta por um caminho que não seja, portanto, nem o da veneração nem o da denúncia, mas que
busque acompanhar o nascimento e a constante reinvenção dessa afirmativa de especificidade, a auto-
nomia da ciência. Para isso, coloca em funcionamento o “princípio de irredução”, ou seja, o recuo à pre-
tensão de saber e de julgar, “de desvendar ‘o mesmo’, acima das diferenças que dizem respeito somen-
te às vivências de seus atores” (p. 76), ,tal como o faz a sociologia, segundo a nossa autora. Para Stengers,
são as ciências políticas que poderiam lhe oferecer instrumentos para colocar em discussão a singulari-
dade das ciências, respeitando os seus agentes, tal como solicita a “restrição leibniziana”. Segundo esta
restrição, a filosofia não deveria desrespeitar os “sentimentos estabelecidos”, o que é assumido por
Stengers como a condição de pertinência da interpretação, sua responsabilidade de não obstruir o devir,
de modo que, no lugar de escandalizar e provocar raiva “em nome da ciência”, pertinente seria o enun-
ciado que possibilitasse a abertura dos sentimentos estabelecidos “àquilo que sua identidade estabeleci-
da os obriga a recusar, combater, desconhecer” (p. 26).
RESENHAS
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Nesse sentido, parece-nos que Isabelle Stengers afirma que sua intenção é explorar as possibilidades
de utilização do registro político para descrever as ciências, associando razão científica à razão política, sem
se excluir desse registro, ou seja, levando em conta as conseqüências do que considera verdadeiro. Está em
jogo, aqui, o próprio projeto político a que Stengers se vincula, indicado sob o signo do riso de humor, ou
seja, a possibilidade de nos interessarmos pela ciência sem nos impressionarmos por ela; de colocar em dis-
cussão os sentimentos estabelecidos sem desrespeitá-los, mas preservando a possibilidade de abri-los,
quem sabe, para outros devires e, com isso, “complicar a vida do poder”. Diferentemente do riso irônico,
que contrapõe uma verdade à outra pretensamente mais lúcida e mais universal, identificado por Stengers
na leitura sociológica, ela não conseguiria reconhecer em si mesma a crença que denuncia no outro.
Essa discussão sobre as interpretações a respeito da ciência e a percepção da força exercida sobre elas
pela imagem que a própria ciência constrói de sua singularidade, para fazer valer suas verdades, constituem
o principal objeto de análise da primeira parte, “Explorando”, do livro de Stengers. Na segunda parte,
“Construindo”, a autora aprofunda a diferenciação entre as abordagens sociológica e política, reafirma sua
opção pela segunda e traz para sua discussão o conceito de “processo contingente”, enunciado por Deleuze
e Guattari em O que é filosofia?, possibilitando-a colocar a ciência sob o signo do acontecimento, ou seja,
como invenção passível de ser reinventada com outros dados – o que acontece, inclusive, a cada nova inter-
pretação – e, com isso, passível se sofrer uma renovação de sua própria identidade no interior do mesmo
processo que a originou, sem necessidade de recorrer à fundação de uma nova tradição. Aí está, parece-
nos, o grande ganho que a abordagem proposta por Stengers nos sinaliza.
Nesses termos, a autora, ao revisitar o acontecimento primordial das ciências modernas, o “caso
Galileu”, toma-o como tendo sido a invenção da possibilidade de se afirmar “isto é científico”, ou melhor,
de entender o conhecimento científico como singular, como um tipo de “ficção” especial que pode fazer
calar todas as outras ficções, graças à prática experimental de que dispõe. Todavia, a pretensão de fazer a
natureza falar, que o dispositivo experimental só realiza segundo determinadas variáveis selecionadas pelo
cientista, só é reconhecida se a comunidade científica reconhece também como pertinentes às tais variáveis
selecionadas. Para que seja reconhecida a autoridade do fenômeno encenado, entram em jogo, portanto,
duas questões políticas: a hierarquia entre as ciências, que facilita ou não tal reconhecimento; e a busca da
criação de interesse para além do laboratório, exigindo que o fenômeno encenado consiga responder aos
mais distintos interesses, sofrendo um inflacionamento de significados, para que seja aceito socialmente.
Assim, se as ciências não podem ser reduzidas a um simples exercício de poder, tampouco estiveram
livre dele no desenrolar de sua história. A política é parte intrínseca da atividade científica, o que não a torna
necessariamente menos pura ou passível de ser denunciada. Desse modo, tanto a abordagem sociológica
quanto a epistemológica são insuficientes. Especialmente quando se trata de compreender as operações
essencialmente políticas que constituem a elaboração tanto da totalidade dos discursos metodológicos – que
fazem esquecer seus autores – como dos juízos teóricos, que buscam se descolar das enunciações experi-
mentais que os originaram, tornando-os ambos generalizáveis por princípio, verdadeiras visões de mundo.
Tais operações políticas são uma forma dos cientistas possibilitarem que seus fatos-artefatos façam história
e tornem-se “verdadeiramente verdadeiros”, assegurando um espaço de expansão sem risco, ao destruir
aquilo que as ciências teórico-experimentais só entendem como não-ciência (p. 130 ss). Essa maneira dos
cientistas “fazerem história” solicita igualmente outros meios de se fazer história com os cientistas, a saber,
aqueles das ciências políticas que nos possibilitam perguntar como se constituiu tal poder, como determi-
nada verdade prevaleceu sobre outras possíveis, que nos permitam avaliar uma ciência segundo seu alcan-
ce e os efeitos a que visa.
Tratando-se de um processo contingente, passível de ser recomeçado com outros termos, faz-se pos-
sível o abandono desta política de submissão do local ao global, de uma ciência a outra, que faz convergir
verdade e poder em troca de outras soluções, que criam, por sua vez, outras identidades para a ciência. Este
é o assunto da terceira parte do livro, intitulada “Proposições”, na qual Stengers, abandonando, portanto,
a definição da ciência como um poder capaz de fazer frente ao poder da ficção e abandonando a associa-
ção fatalista entre saber e poder, propõe como singularidade para a ciência algo anterior, ou seja, a distin-
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ção entre sujeito e objeto, capaz de enunciar uma relação de teste que, este, sim, criaria a diferença entre os
enunciados humanos, no sentido de que o sujeito que pretende a máxima objetividade (como proposto por
Sandra Harding) permite que o objeto lhe coloque à prova e submete suas razões inventadas a um tercei-
ro capaz de colocá-las em risco, de torná-las vulneráveis, não mais ao poder que as “faz existir”, mas ao
“irredutível das outras opiniões” (p. 162).
Essa reinvenção das ciências modernas não é novidade, isto é, jamais deixou de existir, segundo
Stengers. Bem a demonstram as ficções matemáticas e o uso do computador como instrumento de simu-
lação, os novos “objetos” dos chamados herdeiros de Darwin e toda a infinidade de questionamentos tra-
zidos pelas ciências de campo e pelas ciências humanas, para as quais produção de conhecimento e produ-
ção de existência não se separam. Assim, mais que a necessidade de limites éticos, está posto em questão
o ideal que as ciências modernas conquistaram de uma verdade capaz de se opor à ficção, ideal que, colo-
cado sob o riso de humor, pode ser encarado como uma crença entre outras, fundadora de uma cultura, a
ocidental, como também uma entre outras, que criou a ciência moderna.
E é desse modo que, apesar da vergonha de tudo que foi cometido em nome do progresso da ciência
ou em nome da verdade, não podemos renunciar a essa referência, porque não temos escolha, somos seus
herdeiros, livres talvez para estendê-la de outro modo mas não para anulá-la. Desse modo, como instru-
mento de criação e de resistência que preserva as virtudes do humor, Stengers recupera a imagem de
“Parlamento das coisas”, proposta por Bruno Latour. “Poderíamos dizer que o Parlamento das coisas con-
sagra de fato o triunfo das práticas científicas. Porque ele constitui o teste generalizado de nossas ficções e,
em primeiro lugar, daquela de um interesse geral em nome do qual deveriam se submeter os interesses par-
ticulares. Porém identifica essas práticas na medida em que elas fazem multiplicar os representantes, cada
vez mais variados e exigentes, e não porque elas afirmam um direito” (p. 184). O Parlamento das coisas faria
valer, então, não mais o princípio da conquista, que reduz o diverso ao mesmo, mas o da multiplicidade,
segundo o qual o Parlamento se constituiria como a reunião de representantes de um problema que os
compromete e situa, e que devem encontrar laços na heterogeneidade, condicionando a legitimidade das
intervenções feitas em “nome da ciência” à coerção “que declara antidemocrática, ou seja, irracional, toda
estratégia que vise mascarar uma mudança de meio ou de significação, isto é, de passar de uma problemá-
tica de junção a uma pretensão de unificação” (p. 190).
Aqui vemos a associação anunciada por Stengers, já no início do livro, entre racionalidade científica e
racionalidade política, colocada agora em termos da inseparabilidade de princípio entre a qualidade demo-
crática do processo político e a qualidade racional da controvérsia posta em debate (p. 193). Stengers pro-
põe o retorno do enunciado sofista, segundo o qual “o homem é a medida de todas as coisas”, no sentido
de que é necessário assumir o espaço da política como o legítimo produtor de juízos sobre o devir. Surgem,
então, vários outros problemas, tais como o da invenção de dispositivos que permitam ao cidadão comum
tornar-se “competente”, apto a participar, ao lado dos cientistas, da invenção desse devir, a tornar-se repre-
sentante de uma coletividade submetendo a risco suas opiniões e convicções pessoais.
Trata-se, portanto, de inventar outro modo de fazer política, tal como fez o acontecimento da ciência
moderna ao nos solicitar a crença de que sua singularidade nos asseguraria de direito um acesso inteiramen-
te diferente, e por que não dizer superior, ao mundo da verdade. Trata-se de inventar um antídoto à nossa
crença, criando não uma posição que nos permita julgá-la ou abandoná-la, o que seria impossível segun-
do a perspectiva do humor, mas inventando os meios de a civilizar, de torná-la capaz de existir com o que
não é ela, de colocá-la em risco. Nesse sentido, a própria paixão ocidental pela verdade é que exigiria a des-
vinculação entre verdade e poder e o entrelaçamento entre verdades e devires.
É com essa profundidade – que tentamos, ao menos, anunciar nessa resenha – que Isabelle Stengers
discute a singularidade da invenção das ciências modernas, de modo tal que nos permita pensar outros pos-
síveis para elas. É por isso que, tanto para os cientistas, que se inquietam com o devastador poder assumi-
do pelas ciências, quanto para aqueles que, mesmo “de fora”, interessam-se pela atividade científica e per-
cebem a necessidade de dialogar e, quem sabe, participar de sua reinvenção, parece-nos indispensável a lei-
tura de A invenção das ciências modernas, de Isabelle Stengers.

1 Comments:

At 10:29 AM, Anonymous Anônimo said...

El capitalismo cognitivo : du déjà vu ?
par Enzo Rullani
Mise en ligne mai 2000
traduction castillane de Le capitalisme cognitif : du déjà vu ?, Multitudes 2 : mai 2000, Majeure : nouvelle économie politique
1.
¿Por qué hablamos hoy día de capitalismo cognitivo ? En la plétora de discursos sobre la economía del conocimiento, por lo general se deja de lado la cuestión más importante, a saber : por qué hoy día sentimos la necesidad de unir la producción de valor económico a la producción de conocimiento. Por qué esta necesidad emerge con fuerza ahora en vez de hace diez o veinte años.
La unión de economía y conocimiento no es una novedad. Esta unión existe, y tiene mucha consistencia desde que, con la revolución industrial, la producción comenzara a utilizar máquinas (es decir, la ciencia y la tecnología incorporadas a las máquinas) ; después, con Taylor, a organizar científicamente el trabajo. Toda la historia del capitalismo industrial, durante sus dos siglos de existencia, es la historia de la extensión progresiva de las capacidades de previsión, de programación y de cálculo de los comportamientos económicos y sociales a través de la utilización del conocimiento. El « motor » de acumulación del capital ha sido puesto a punto por el positivismo científico, que ha recogido, en el último siglo, la herencia de las Luces, y que ha inscrito el saber en la reproducibilidad.
El conocimiento se ha puesto al servicio de la producción en tanto que conocimiento determinista, cuya tarea es la de controlar la naturaleza a través de la técnica y los hombres a través de la jerarquía. Los resultados, en términos de ventajas prácticas, han sido remarcables (aumento de la productividad y de los ingresos), pero ello al precio de la pérdida de la fuerza liberadora de una razón que, tras estar plegada a antiguas servidumbres, parecía preparada para imaginar, sentir, comunicar más allá de los límites del utilitarismo. Reduciendo el conocimiento a un simple modo de cálculo y de control técnico, la modernización ha reprimido la variedad, la variabilidad y la indeterminación del mundo, para conformarlo a las exigencias de la producción. En otros términos : la modernidad ha reducido de manera forzosa la complejidad (variedad, variabilidad, indeterminación) del entorno natural, del organismo biológico, del espíritu pensante y de la cultura social, a las dimensiones toleradas por la fábrica industrial. Es decir : a muy poco o a nada.

 

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Submidialogia

"o que é uma imagem finalmente? Existem pelo menos dois tipos de imagem: a imagem enquanto picture e um outro tipo de imagem que vem da Bíblia e de certas tradições exotéricas que nós não conhecemos muito bem, como a Cabala. São João, na Bíblia, diz que a imagem virá no tempo da ressurreição. Quer dizer, Jesus na cruz não é uma imagem, mas picture..."
p. 28"Como a câmera escura para a sociedade do espetáculo, o panóptico para a sociedade disciplinar e a televisão para a sociedade pós-industrial, a realidade virtual é o dispositivo que melhor representa o papel das novas tecnologias da imagem na sociedade contemporânea. A realidade virtual é uma espécie de princípio de realidade dos novos tempos, buraco negro da nova cultura cibernética para onde estaria migrando toda a realidade social."/"não se trata mais de pensar como a imagem representa a realidade, mas sim de pensar um real que só existe em função do que a imagem permite visualizar."André Parente

quinta-feira, outubro 19, 2006

Caverna de Platão eletrificada

Mas, dirão vocês, e com toda razão, os tempos são outros. Já não são os do cinema, nem sequer exclusivamente os da televisão, muito menos do Fuhrer. Então, para apenas roçar o que está em jogo hoje, eu proporia um salto, e vou tentar uma breve descrição um pouco mais geral sobre os tempos presentes, proposta há poucos anos atrás por Franco Berardi, e que apesar de algumas reticências que se possa ter com relação a um ou outro aspecto, conserva plenamente sua atualidade (1). Bifo lembra que já não se pode expressar o conjunto dos processos em curso em termos de uma física dos corpos sólidos, mas só em termos de uma psicoquímica dos fluxos tecnoneuronais. A sociedade aparece como uma imensa solução flúida na qual se difundem, se diluem, se mesclam e se confudem substâncias psicoquímicas de cores diferentes. Crenças, tradições, ilusões, fés, ódios, desejos que provêm de vários estratos do inconsciente antropológico. Fluxos midiáticos que provêm de várias fontes do ciberespaço. Fluxos subculturais que provêm dos vários níveis do imaginário planetário. E longe de reduzir ou uniformizar o comportamento cultural, a integração planetária produziu uma multiplicação de refrações, esfumaçamentos, meios-tons que dependem dos diversos graus de contaminação. É verdade que a economia funciona como código semiótico transversal, capaz de comandar a gama infinita da diferenciação. Mas ela não unifica, não ajuda a encontrar um elemento universal humano no caleidoscópio das diferenças, ao contrário, inocula agressividade nas relações, rigidificações identitárias. As consequencias desse contexto, do ponto de vista de uma suposta democracia, são imponderáveis. As decisões globais dependem cada vez menos da opinião e da vontade, e cada vez mais do dever cego e inevitável dos fluxos psicoquímicos (hábitos, medos, ilusões, fanatismos) que atravessam a mente social. O lugar de formação da esfera pública se transferiu da dimensão do confronto entre opiniões ideologicamente fundadas para o magma do oceano neurotelemático, no qual as coisas se determinam fragmentariamente, imprevisivelmente, por efeito de tempestades psicomagnéticas e cada vez menos referidas a esquemas políticos definidos. Claro que há divergência de opiniões, cada um pode se expressar como quiser, mas isso já não tem nenhuma importância, pois já nada significa, não tem efeito algum. A proliferação ilimitada das fontes de informação, por sua vez, não necessariamente significa uma abertura democrática, talvez porque o efeito sociedade não se encontra mais na esfera do discurso, mas na psicoquímica. Ali não temos discurso, mas imagens, estratégias mais ou menos conscientes de pervasão subliminar. Potência imensa do fluxo invasivo que emana do poder infoesférico e abole a distinção entre esfera onírica e esfera da vida cotidiana. A partir dos anos 70, sobretudo, e do encontro entre politica e publicidade, com a difusão da televisão como eletrodoméstico viral omniinvasivo, o destino coletivo se decide cada vez menos na esfera da política democrática, e cada vez mais na esfera psicodélica das aparições de fantasmas inconscientes. Assim, essa mutação não pode ser apreendida com as categorias da democracia moderna ou representativa, com o reino da opinião, das regras. Diante da decomposição da mente moderna, resultante dessa mutação do ambiente em que se forma essa mente, do adensamento da crosta infoesférica, da expansão do ciberespaço, não cabem mais as modalidades lógico-críticas. Assistimos à integração da mente no processo de produção capitalista, à incorporação da inteligência na lógica do capital. Assim, não há mais sentido em falar da restauração das condições democráticas da política, pois a formação livre de opinião, condição necessária para o exercício do que nos acostumamos a chamar de democracia, tende a diluir-se. Nas condições da infoprodução, os fluxos psicoquímicos que agem sobre a mente social adquirem tal intensidade e tal potência invasiva, que os sinais pelos quais a mente é estimulada não são mais julgáveis criticamente. Penetramos numa zona de indistinção, de indecidibilidade. É o reino do Neuromagma. Na espiral neuromagmática a mente não pode mais elaborar escolhas conscientes, nem exprimir subjetividade coerente. Colocada nas condições de indecibilidade, o organismo consciente reage com pânico, depressão, ou se reterritorializa na identidade.

O virtual é uma imagem em espelho que forma um curto circuito com a imagem atual, sem que se possa dizer qual das duas é a verdadeira: eu já vivi este momento antes? Sim, mas em um tempo sempre por vir."/"Se tudo nos parece uma ficção, uma ficção de ficção, se tudo parece conspirar para uma desmaterialização do mundo, se temos dificuldades em viver a história, é porque tudo parece já ter sido programado, preestabelecido, construído, calculado de forma a nos tirar o poder de fabulação."/André Parente

2 Comments:

At 8:07 PM, Anonymous Anônimo said...

A ciência quando foi em busca do cerebro como último lugar explicativo do sentido que aparecia como caixa preta e centro de controle, havia se transformado em cerebro coletivo. Agora deseja-se transforma-lo numa paramnésia metafísica na qual se cristaliza o passado com a finalidade de tornar o pensamento repetível.

 
At 1:47 PM, Anonymous Anônimo said...

Há algum tempo – um tempo infinitesimal que me leva até os rincões de começos de mundos, de quando meu corpo era uma tocha esférica – venho compondo, com linhas de corpos em fogo e com o plano de um pensamento impassível, um conceito de Universidade do FORA que seja uma coisa viva.


A Universidade do FORA é uma intensidade ou um corisco na matéria escura da vida para liberar o pensamento para a sua meia-noite – liberar o pensamento das amarras e peias da Academia, para afirmar que aquele não tem pátria nem mátria. Não nos agrada mais o feminino que o masculino – a nós, que somos afetados imediatamente pelo cosmos, seu infinitamente grande e seu infinitamente pequeno, suas sutis flutuações, seus rearranjos luminosos, esse ser de luz e nada; a nós, cujo ultra-sexo é indiferente às dicotomias; a nós, nós mesmos uma inflexão na memória cósmica, um movimento sensual de contração na Rizosfera (Deleuze e Guattari me perpassam...).


Uma inflexão cuja força põe em modificação tanto mundo físico, quanto o orgânico e o simbólico – e todos os mundos desses mundos. Uma potência que faz todos estes estratos balouçarem – contrações geológicas para novas sedimentações; delírios dos corpos em torno de Artaud e Geoffroy Saint-Hilaire, em busca de outros modos de organização; descompasso da história-macho cujo caminho linear se vê recortado e estraçalhado por toda sorte de devires, de modo a se tornar a semi-reta de um ilimitado labirinto sem Ariadne, sem Teseu, sem fio – mas espaço de Proteu.


Pensamos que o fora da Academia só pode ser uma Universidade do FORA. Aqui, o termo Universidade não designa um novo lugar de produção de conhecimento, uma nova Academia, a mesma universidade medieval, escolástica, cristã, clerical que é a mesma universidade renascentista, humanista e universalista que é a mesma universidade iluminista, progressista e futurista que é a mesma universidade moderna, pragmatista, positivista, laica, gratuita, estatal ou privada – que nos importa? Se o que sempre esteve em jogo foi a Captura do pensamento por lunáticos do Clero, por virtuosos Iluminados, por cérebros encarcerados pelo movimento de produção do lucro, etc.


Não se trata de uma reivindicaçãozinha intelectualista. Pensamos o intelectual, na Universidade do FORA, de outro modo. Basta conclamar os devires, contrair e distender a MEMÓRIA e lembrar que os intelectuais na Idade Média avessos às categorias gramscianas, retomadas por Le Goff, de “crítico” e “orgânico” – esses intelectuais, dizia, deliraram a sexualidade, a cosmologia, a ética, a experiência do pensamento.


Abelardo, Mestre Eckhart e todos os empiristas superiores, os Goliardos do pensamento que é corpo, do espírito que é coisa.



É deliciosos mergulhar em Artaud e trazer de seu mar de vísceras e pregas Abelardo, carnoso e orgástico, a amar Heloísa em sua filosofia: “Sim, Heloísa, em ti é que ando com toda a minha filosofia (...) O beijo abre as suas cavernas aonde morre o mar. E veja-se o espasmo onde o céu concorre, uma espiritual coligação se desfralda, DE MIM CHEGADO. Ah! Já só me sinto vísceras, sem ponte do espírito por cima. Sem tantos sentidos mágicos, tantos segredos reunidos. Ela e eu. Estamos realmente lá. Domino-a. Abraço-a. Uma última pressão me imobiliza, me congela. Sinto entre as coxas a Igreja a deter-me, a lamentar-se; irá paralisar-me? Vou-me retirar? Não, não, afasto a derradeira muralha. S. Francisco de Assis, que me guardava o sexo, afasta-se. Santa Brígida abre-me os dentes. Santo Agostinho desaperta-me o cinto. Santa Catarina de Sena adormece Deus. Acabou-se bem acabado, deixei de ser virgem. A muralha celeste caiu. Estou a ser tocado pela universal loucura. Escalo o meu orgasmo no mais alto éter” (A. ARTAUD: Arte e Morte, pp. 26-7).



A Igreja está no corpo de Abelardo e, como uma muralha, quer deter o dardo obsceno, a estaca mágica do goliardo e a cripta demoníaca de Heloísa. Mas veja como cai a muralha celeste, a abóbada clerical que lhe revestia o cérebro e o sexo. Desaperta o cinto, abre as pernas e mergulha na imanência. O hímen se rompe e derrama o FORA. Heloísa e Abelardo estão realmente lá. Lá que não é além, mas ao lado, pelo meio das pernas.



Quando as muralhas desabam é o FORA que nos perpassa em nosso trajeto pelo seu MEIO. O beijo abre as cavernas e o corpo de Abelardo é liberado, todo o seu pensamento é transvazado à Igreja.


E nós, virgens do pensamento? Que muralhas revestem os contornos sinuosos de nosso cérebro, a converter-lhe em verdadeira cidade dos templários, a coibir nosso desejo para submetê-lo à falta, a codificar nossas vontades e a territorializar nossos mínimos procedimentos para atar nossa potência ao imóvel e frio mastro do poder?


Que acabe bem acabada nossa virgindade! Que o pensamento seja transvazado ao FORA e que o CÉREBRO seja todo ele uma ilimitada periferia.


Queremos um cérebro
que seja uma cidade de vespas
uma cidade de abelhas,
um ninho de ratos
um subterrâneo de formigas
uma multiplicidade incontrolável
em que se encontre um outra ordem
não mais a de Deus, a do Homem, a do Estado.

 

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Paramnésia metafísica

Por que não afirmar que a dita era do simulacro teria início não com as novas tecnologias da imagem, mas sim com a separação entre natureza e cultura, separação esta vivida pelo homem com a introdução da linguagem?" "O virtual não se opõe ao real, mas sim aos ideais de verdade que são a mais pura ficção." O novo significa a emergência da imaginação no mundo da razão, e conseqüentemente num mundo que se libertou dos modelos disciplinares da verdade. Tanto na filosofia como na ciência e na arte, o tempo é o operador que põe em crise a verdade e o mundo, a significação e a comunicação. A razão é muito simples: ao tempo da verdade (verdades eternas) se substitui a verdade do tempo como produção de simulacros, ou seja, do novo como processo. "Ou o tempo é invenção, ou ele não é nada", diz Bergson, para quem o passado é o elemento ontológico do tempo, e, como tal, é virtual, ou seja, ele não se confunde com nenhum atual (presente). Trata-se de um passado que nunca foi presente, como no caso da paramnésia. A paramnésia é positiva, pois ela indica que o tempo não pára, ou melhor, que ele não pára de se desdobrar, passando por passados não necessariamente verdadeiros (eu te encontrei ano passado em Marienbad) e por presentes incompossíveis (encontrou-me e não me encontrou ao mesmo tempo — tudo depende do meu desejo de me deixar seduzir)."
"As novas tecnologias da imagem suscitam o seguinte problema: se por um lado elas nos empolgam ao pôr em crise o sistema de representação, uma vez que, com o simulacro, não se pode mais distinguir o falso do verdadeiro, a cópia do original, a realidade da ilusão, por outro lado, ela implica a redução do simulacro ao clichê (puro jogo de imagem em que o simulacro se fecha sobre si mesmo)."André Parente

1 Comments:

At 1:35 PM, Anonymous Anônimo said...

A realidade virtual é uma tecnologia que, em certas situações, se substitui tão perfeitamente ao real que, para muitos, ela é o canto das sereias de hoje."
/
"A fuga do verdadeiro real e o refúgio numa realidade virtual vão sem dúvida permitir às nossas sociedades invadidas por um desemprego estrutural fornecer a milhões de ociosos forçados alucinações virtuais capazes de ocupar espíritos e corpos como um novo ópio". (Philippe Quéau)

p. 33
"Cada época produz seu pão e seu circo, suas leis e seu ópio, suas repúblicas e sua poesia. Não vemos porque a ficção produzida pelas tecnologias do virtual seriam mais alienantes do que qualquer outra forma de fabulação."
/
"o ciberespaço é uma inegável lembrança do fato de que somos condicionados para, desde muito cedo, ignorar e negar que nossa subjetividade é, por si só, uma simulação hiper-realista."
/
"Habitualmente, pensamos no mundo como "algo fora de nós", mas o que percebemos é fruto de modelos cognitivos que existem apenas em nosso cérebro."
/
"dar ao simulador hiper-realista de nossas cabeças o controle de um simulador hiper-realista computadorizado faz com que algo de extrema importância esteja prestes a acontecer." (Howard Rheingold)

p. 34
"Todo corpo tem suas artificialidades, toda máquina tem suas virtualidades: são os agenciamentos sociais nos corpos e nas máquinas."
André Parente

 

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quarta-feira, outubro 18, 2006

Ilha de Deus

Domingo vai rolar uma trilha pela reserva de manguezal do Recife, fonte de sobrevivência de várias espécies, inclusive de homens caranguejos. A trilha começa na ilha de Deus...vamu lutar pela construção de redes de tratamento de esgoto dos canais que desaguam na "área de proteção ambiental" (que proteção é essa?)

Os caranguejos perguntam: "Onde estão os homens"?

Saída do terminal do ônibus setúbal
Horário: 8:00 da manhã
O que levar: protetor solar, repelente(pra quem acha q precisa), um tênis velhinho e livros para doar à biblioteca do Movimento Caranguejo Uçá.

1 Comments:

At 4:58 PM, Anonymous Anônimo said...

Que massa...legal saber sobre esses movimentos que estão aparecendo!!! não vou está neste domingo aqui, porém espero que tenha outras oportunidades...Eh isso vamu meter o pé na lama!!! :)

 

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domingo, outubro 15, 2006

Submidialogia

Computador Reciclado

O Maruim Cultural participou do encontro "intergalático" de submidialogia. Os debates foram bastante interessantes envolvendo temas como: cultura digital, compartilhamento de dados, quebra de monopólio da mídia, produção e democratização de informação, além da oficina dirigida pelo belga Etienne Delacroix
sobre a importância do material reciclado como inclusão digital.









3 Comments:

At 9:00 AM, Anonymous Anônimo said...

O encontro foi massa, reuiniu uma galera de todo Brasil...eh isso...Cultura digital rompendo as barreiras do monopólio de informação!!!!!

 
At 11:49 PM, Anonymous Anônimo said...

Radio livre...sai com muitas reflexões sobre esse tema...monopólio da mídia, famílias coronelistas da informação. Enquanto muitos cheiravam lança em porto nós cheirávamos informação, carreiras e mais carreiras...e claro teve um vinhozinho depois pra absorver melhor.

 
At 10:31 AM, Anonymous Anônimo said...

Poderíamos dizer que o encontro Submidialogia, nos vários debates de alto nível que os jovens de São Paulo e de outro lugares trouxeram,que as perspectivas de de nossos desejos libertários na era da imagem de síntese tem se colocado em torno de pelo menos dois conceitos de virtual: Um ,limitado e infinito; outro ilimitado e finito. No primeiro sofremos de Paramnésia, onde virtual= usuário= a?

 

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