quinta-feira, novembro 30, 2006

MUSEU DA PALAVRA/ MUNDA DA IMAGEM

BERGSON, Henri (1859-1941). Matéria e Memória. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 291p.; 18,5 cm.
Convenções:p. - número da página( ) - referência de citações de outros autores/ - simples separação antes de outra citação, sem ligação de sentido, na mesma página[...] supressão de palavras ou frases para reduzir a citação sem perder o sentido[ ] outros comentários ou definições do anotador das citações
Citações...p. 13"É o cérebro que faz parte do mundo material, e não o mundo material que faz parte do cérebro."
p. 14"Meu corpo é portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe."
p. 15 a 16"Os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles."
p. 20"a ficção de um objeto material isolado não implicará uma espécie de absurdo, já que esse objeto toma emprestado suas propriedades físicas das relações que ele mantém com todos os outros, e deve cada uma de suas determinações - sua própria existência, conseqüentemente - ao lugar que ocupa no conjunto do universo?"/"Há um sistema de imagens que chamo minha percepção do universo, e que se conturba de alto a baixo por leves variações de uma certa imagem privilegiada, meu corpo. essa imagem ocupa o centro; sobre ela regulam-se todas as outras; a cada um de seus movimentos tudo muda, como se girássemos um caleidoscópio. Há, por outro lado, as mesmas imagens, mas relacionadas cada uma a si mesma, umas certamente influindo sobre as outras, mas de maneira que o efeito permanece sempre proporcional à causa: é o que chamo de universo."
p. 21"Toda imagem é interior a certas imagens e exterior a outras; mas do conjunto das imagens não é possível dizer que ele nos seja interior ou que nos seja exterior, já que a interioridade e a exterioridade não são mais que relações entre imagens."
p. 26"O cérebro não deve portanto ser outra coisa, em nossa opinião, que não uma espécie de central telefônica: seu papel é "efetuar a comunicação", ou fazê-la aguardar. Ele não acrescenta nada àquilo que recebe; mas, como todos os órgãos perceptivos lhe enviam seus últimos prolongamentos, e todos os mecanismos motores da medula e do bulbo raquidiano têm aí seus representantes titulares, ele constitui efetivamente um centro, onde a excitação periférica põe-se em contato com este ou aquele mecanismo motor, escolhido e não mais imposto."
p. 27"tanto nos centro superiores do córtex quanto na medula, os elementos nervosos não trabalham com vistas ao conhecimento: apenas esboçam de repente uma pluralidade de ações possíveis, ou organizam uma delas."
p. 27 a 28"não caberia pensar que a percepção [...] seja inteiramente orientada para a ação, e não para o conhecimento puro? E, com isso, a riqueza crescente dessa percepção não deveria simbolizar simplesmente a parte crescente de indeterminação deixada à escolha do ser vivo em sua conduta em face das coisas?"
p. 31"a memória sob estas duas formas, enquanto recobre com uma camada de lembranças um fundo de percepção imediata, e também enquanto ela contrai uma multiplicidade de momentos, constitui a principal contribuição da consciência individual na percepção."
p. 33"O que a distingue, enquanto imagem presente, enquanto realidade objetiva, de uma imagem representada é a necessidade em que se encontra de agir por cada um de seus pontos sobre todos os pontos das outras imagens, de transmitir a totalidade daquilo que recebe, de opor a cada ação uma reação igual e contrária, de não ser, enfim, mais do que um caminho por onde passam em todos os sentidos as modificações que se propagam na imensidão do universo. Eu a converteria em representação se pudesse isolá-la."
p. 34"Ora, se os seres vivos constituem no universo "centros de indeterminação", e se o grau dessa indeterminação é mediado pelo número e pela elevação de suas funções, concebemos que sua simples presença possa equivaler à supressão de todas as partes dos objetos nas quais suas funções não estão interessadas. Eles se deixarão atravessar, de certo modo, por aquelas dentre as ações exteriores que lhes são indiferentes; as outras, isoladas, tornar-se-ão "percepções" por seu próprio isolamento. Tudo se passará então, para nós, como se refletíssemos nas superfícies a luz que emana delas, luz que, propagando-se sempre, jamais teria sido revelada. As imagens que nos cercam parecerão voltar-se em direção a nosso corpo, mas desta vez iluminada a face que o interessa; elas destacarão de sua substância o que tivermos retido de passagem, o que somos capazes de influenciar. Indiferentes umas às outras em razão do mecanismo radical que as vincula, elas apresentam reciprocamente, umas às outras, todas as suas faces ao mesmo tempo, o que equivale a dizer que elas agem e reagem entre si por todas as suas partes elementares, e que, conseqüentemente, nenhuma delas é percebida nem percebe conscientemente. E se, ao contrário, elas deparam em alguma parte com uma certa espontaneidade de reação, sua ação é diminuída na mesma proporção, e essa diminuição de sua ação é justamente a representação que temos dela. Nossa representação das coisas nasceria portanto, em última análise, do fato de que ela vêm refletir-se contra nossa liberdade."
p. 35"A percepção assemelha-se [...] aos fenômenos de reflexão que vêm de uma refração impedida; é como um efeito de miragem."
p. 35 a 36"há para as imagens um simples diferença de grau, e não de natureza, entre ser e ser conscientemente percebidas. A realidade da matéria consiste na totalidade de seus elementos e de suas ações de todo tipo. Nossa representação da matéria é a medida de nossa ação possível sobre os corpos; ela resulta da eliminação daquilo que não interessa nossas necessidades e, de maneira mais geral, nossas funções. Num certo sentido, poderíamos dizer que a percepção de um ponto material inconsciente qualquer, em sua instantaneidade, é infinitamente mais vasta e mais completa que a nossa, já que esse ponto recolhe e transmite as ações de todos os pontos do mundo material, enquanto nossa consciência só atinge algumas partes por alguns lados. A consciência - no caso da percepção exterior - consiste precisamente nessa escolha. Mas, nessa pobreza necessária de nossa percepção consciente, há algo de positivo e que já anuncia o espírito: é, no sentido etimológico da palavra, o discernimento."
p. 38 a 39"O que você tem a explicar, portanto, não é como a percepção nasce, mas como ela se limita, já que ela seria, de direito, a imagem do todo, e ela se reduz, de fato, àquilo que interessa a você."
p. 39"o cérebro é uma imagem como as outras, envolvida na massa das outras imagens, e seria absurdo que o continente saísse do conteúdo."
p. 40"ciência e consciência coincidiriam no instantâneo".
p. 41"ao nos exprimirmos assim, estaremos apenas nos curvando às exigências do método científico; não descreveremos em absoluto o processo real."
p. 44"a percepção, em seu conjunto, tem sua verdadeira razão de ser na tendência do corpo a se mover."
p. 46"nossa representação começa sendo impessoal. Só pouco a pouco, e à força de induções, ela adota nosso corpo por centro e torna-se nossa representação. O mecanismo dessa operação, aliás, é fácil de compreender. À medida que meu corpo se desloca no espaço, todas as outras imagens variam; a de meu corpo, ao contrário, permanece invariável. Devo portanto fazer dela um centro, ao qual relacionarei todas as outras imagens."

quarta-feira, novembro 29, 2006

A LÓGICA DA DIFERENÇA


Virtual Mathematics: The Logic of Difference
Simon Duffy (Editor), Paul Patton (Editor)
These essays examine the work of Gilles Deleuze, in particular his practice of enlisting mathematical resources to underpin and inform a wide variety of philosophical positions. Deleuze's work serves as a focus in these pieces for alternative conceptual lineages and as a rich source for fashioning mathematical concepts as tools for understanding a world seen in terms of becoming and difference.With contributions from Alain Badiou, Manuel DeLanda, Gilles ChGtelet, and Daniel Smith, this analytic review challenges the self-imposed limits of philosophy while it elucidates a host of connections between mathematics and philosophy.
Simon Duffy is a research assistant at the University of Sydney. Paul Patton is the author of Deleuze and the Political and Deleuze: A Critical Reader and the translator for Deleuze's Difference and Repetition. He is a professor of philosophy at the University of New South Wales in Sydney, Australia.

1 Comments:

At 1:42 PM, Blogger Maruim Cultural said...

Deleuze é do além

 

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terça-feira, novembro 28, 2006

O genoma humano, Jorge Luis Borges e a Biblioteca de BabelColunista relê conto do escritor argentino à luz da estrutura desordenada de nosso material genético
"Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências".
A visão metafórica do genoma humano como uma biblioteca tornou-se quase um lugar comum. Desde os primórdios da biologia molecular, imagens lingüísticas, gramaticais ou bibliográficas têm sido empregadas com esse fim. Dizemos que a informação do DNA codificador no genoma (os genes) está escrita em um alfabeto de 4 letras (bases nitrogenadas) e é transcrita em RNA mensageiro e posteriormente traduzida para a linguagem das proteínas, que compreende um alfabeto de 20 letras (aminoácidos). Até o início da década de 1970, o modelo que tínhamos do genoma humano era de um lugar bem organizado, mais ou menos estático, onde cada gene tinha um local correto e preordenado pela sua função. Assim, fazia sentido uma perspectiva biblioteconômica na qual os genes eram textos, os cromossomos eram estantes ou seções e tudo estava organizado de maneira racional, tendo evoluído sob a regência da seleção natural. Mas o quadro final que o Projeto Genoma Humano (PGH) nos revelou foi muito diverso! Nosso genoma lembra mais um depósito do que uma biblioteca: desarrumado, sem qualquer evidência de organização, cheio de tralha acumulada (o DNA não-codificador), já que praticamente nada é jogado fora, mesmo que não tenha qualquer utilidade. Além disso, o genoma humano é dinâmico, os seus pedaços são embaralhados e mudados de lugar freqüentemente, sem razão ou rima. Os genes codificadores são escassos (menos de 2% do total!) e estão espalhados descuidada e indiscriminadamente no meio de uma enorme quantidade de DNA altamente repetitivo, sem sentido ou função aparente – o chamado DNA-tralha* (junk DNA), que alguns traduzem erroneamente como DNA-lixo. As estimativas são de apenas 20 mil a 25 mil genes estruturais humanos, um número próximo ao da planta-modelo Arabidopsis thaliana (25.500) e do pequeno verme nematódeo Caenorhabtidis elegans (~19 mil genes). As previsões de 100 mil a 120 mil genes humanos, feitas no início do PGH, não se concretizaram. Assim, a elucidação do nosso genoma – esta violação científica do nosso sanctum sanctorum genético – terminou em uma grande lição de humildade, a terceira que a ciência ministrou ao ser humano: a primeira veio com Copérnico e a revelação da Terra como um planeta qualquer e não o centro do universo (século 16); a segunda com Darwin e a teoria da evolução, demonstrando que o homem era uma espécie animal qualquer e não o ápice da criação (século 19). Agora, descobrimos que o genoma humano é um genoma qualquer e não tem muito de especial. Tamanho não é documento
"... para uma linha razoável com uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências". Se olharmos o genoma humano do ponto de vista evolucionário, em comparação com outros genomas, a coisa se complica ainda mais. O tamanho total aparentemente não significa nada. O tabaco, o lírio, a salamandra e outros têm genomas muito maiores do que o nosso. Há mesmo uma prosaica ameba (Amoeba proteus) que tem um genoma com 690 bilhões de pares de base, mais de 200 vezes o humano. Obviamente estas diferenças não refletem uma variação no número de genes, mas sim na quantidade de DNA não-codificador (DNA-tralha*). O número de cromossomos tampouco tem qualquer significado. O genoma humano contém 23, enquanto o da borboleta Lysandra atlantica tem 250! Finalmente o próprio conteúdo carece de sentido. Duas seqüências não codificadoras apenas, chamadas Alu e L1, estão repetidas milhões de vezes no genoma humano e representam 28% do total! No rato-canguru (Dipodomys ordii), mais de 50% do genoma consiste de apenas três seqüências simples repetidas, sendo uma delas – AAG – repetida mais de um bilhão de vezes. É preciso muita imaginação para tentar entrever desenho ou necessidade nesta bagunça genômica. Para tal precisaríamos invocar a capacidade humana que nos permite reconhecer nas nuvens elefantes, camelos, enfim, zoológicos completos. Se o genoma é uma biblioteca, que raio de biblioteca é esta? Borges e o genoma humano O argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) foi um escritor inigualável. Seus contos, enigmáticos e fantásticos, são curtos, mas com mais conteúdo que volumes inteiros, levando-nos a passar horas em especulações filosóficas. São como urânio comprimido em massa crítica – dentro de nossas cabeças explodem com a força de megatons. De interesse particular para nós na coluna de hoje é seu conto intitulado “A Biblioteca de Babel”, publicado no livro Ficções, de 1944, lançado no Brasil pela Editora Globo (cópias do conto podem ser facilmente encontradas na internet). Nele é descrita uma biblioteca muito especial, que me trouxe à mente o genoma humano. Proponho então fazer um joguinho, uma brincadeira. Com a cara-de-pau dos nefelomantes, vou pinçar aqui algumas passagens de Borges cuja relação com a descrição do genoma humano acima salta aos olhos. Vamos lá: - “Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências.” - “... há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas.” - “... para uma linha razoável com uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências.” - “... quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por dialetal ou rudimentar que seja.”
"... ninguém pensou que o livro e labirinto eram um único objeto". - “... cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra ou por uma vírgula.” - “Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase milagrosa exceção.” - “A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.” Não é um joguinho sensacional? Para terminar, peço emprestada uma pequena passagem de outro conto maravilhoso de Borges, também do livro Ficções, chamado “O jardim de veredas que se bifurcam”: “... ninguém pensou que o livro e labirinto eram um único objeto”.
Sergio Danilo PenaProfessor Titular do Departamento de Bioquímica e ImunologiaUniversidade Federal de Minas Gerais12/05/2006

O genoma humano, Jorge Luis Borges e a Biblioteca de BabelColunista relê conto do escritor argentino à luz da estrutura desordenada de nosso material genético
"Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências".
A visão metafórica do genoma humano como uma biblioteca tornou-se quase um lugar comum. Desde os primórdios da biologia molecular, imagens lingüísticas, gramaticais ou bibliográficas têm sido empregadas com esse fim. Dizemos que a informação do DNA codificador no genoma (os genes) está escrita em um alfabeto de 4 letras (bases nitrogenadas) e é transcrita em RNA mensageiro e posteriormente traduzida para a linguagem das proteínas, que compreende um alfabeto de 20 letras (aminoácidos). Até o início da década de 1970, o modelo que tínhamos do genoma humano era de um lugar bem organizado, mais ou menos estático, onde cada gene tinha um local correto e preordenado pela sua função. Assim, fazia sentido uma perspectiva biblioteconômica na qual os genes eram textos, os cromossomos eram estantes ou seções e tudo estava organizado de maneira racional, tendo evoluído sob a regência da seleção natural. Mas o quadro final que o Projeto Genoma Humano (PGH) nos revelou foi muito diverso! Nosso genoma lembra mais um depósito do que uma biblioteca: desarrumado, sem qualquer evidência de organização, cheio de tralha acumulada (o DNA não-codificador), já que praticamente nada é jogado fora, mesmo que não tenha qualquer utilidade. Além disso, o genoma humano é dinâmico, os seus pedaços são embaralhados e mudados de lugar freqüentemente, sem razão ou rima. Os genes codificadores são escassos (menos de 2% do total!) e estão espalhados descuidada e indiscriminadamente no meio de uma enorme quantidade de DNA altamente repetitivo, sem sentido ou função aparente – o chamado DNA-tralha* (junk DNA), que alguns traduzem erroneamente como DNA-lixo. As estimativas são de apenas 20 mil a 25 mil genes estruturais humanos, um número próximo ao da planta-modelo Arabidopsis thaliana (25.500) e do pequeno verme nematódeo Caenorhabtidis elegans (~19 mil genes). As previsões de 100 mil a 120 mil genes humanos, feitas no início do PGH, não se concretizaram. Assim, a elucidação do nosso genoma – esta violação científica do nosso sanctum sanctorum genético – terminou em uma grande lição de humildade, a terceira que a ciência ministrou ao ser humano: a primeira veio com Copérnico e a revelação da Terra como um planeta qualquer e não o centro do universo (século 16); a segunda com Darwin e a teoria da evolução, demonstrando que o homem era uma espécie animal qualquer e não o ápice da criação (século 19). Agora, descobrimos que o genoma humano é um genoma qualquer e não tem muito de especial. Tamanho não é documento
"... para uma linha razoável com uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências". Se olharmos o genoma humano do ponto de vista evolucionário, em comparação com outros genomas, a coisa se complica ainda mais. O tamanho total aparentemente não significa nada. O tabaco, o lírio, a salamandra e outros têm genomas muito maiores do que o nosso. Há mesmo uma prosaica ameba (Amoeba proteus) que tem um genoma com 690 bilhões de pares de base, mais de 200 vezes o humano. Obviamente estas diferenças não refletem uma variação no número de genes, mas sim na quantidade de DNA não-codificador (DNA-tralha*). O número de cromossomos tampouco tem qualquer significado. O genoma humano contém 23, enquanto o da borboleta Lysandra atlantica tem 250! Finalmente o próprio conteúdo carece de sentido. Duas seqüências não codificadoras apenas, chamadas Alu e L1, estão repetidas milhões de vezes no genoma humano e representam 28% do total! No rato-canguru (Dipodomys ordii), mais de 50% do genoma consiste de apenas três seqüências simples repetidas, sendo uma delas – AAG – repetida mais de um bilhão de vezes. É preciso muita imaginação para tentar entrever desenho ou necessidade nesta bagunça genômica. Para tal precisaríamos invocar a capacidade humana que nos permite reconhecer nas nuvens elefantes, camelos, enfim, zoológicos completos. Se o genoma é uma biblioteca, que raio de biblioteca é esta? Borges e o genoma humano O argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) foi um escritor inigualável. Seus contos, enigmáticos e fantásticos, são curtos, mas com mais conteúdo que volumes inteiros, levando-nos a passar horas em especulações filosóficas. São como urânio comprimido em massa crítica – dentro de nossas cabeças explodem com a força de megatons. De interesse particular para nós na coluna de hoje é seu conto intitulado “A Biblioteca de Babel”, publicado no livro Ficções, de 1944, lançado no Brasil pela Editora Globo (cópias do conto podem ser facilmente encontradas na internet). Nele é descrita uma biblioteca muito especial, que me trouxe à mente o genoma humano. Proponho então fazer um joguinho, uma brincadeira. Com a cara-de-pau dos nefelomantes, vou pinçar aqui algumas passagens de Borges cuja relação com a descrição do genoma humano acima salta aos olhos. Vamos lá: - “Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito. No vestíbulo há um espelho, que fielmente duplica as aparências.” - “... há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas.” - “... para uma linha razoável com uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências.” - “... quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por dialetal ou rudimentar que seja.”
"... ninguém pensou que o livro e labirinto eram um único objeto". - “... cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra ou por uma vírgula.” - “Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase milagrosa exceção.” - “A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.” Não é um joguinho sensacional? Para terminar, peço emprestada uma pequena passagem de outro conto maravilhoso de Borges, também do livro Ficções, chamado “O jardim de veredas que se bifurcam”: “... ninguém pensou que o livro e labirinto eram um único objeto”.
Sergio Danilo PenaProfessor Titular do Departamento de Bioquímica e ImunologiaUniversidade Federal de Minas Gerais12/05/2006

BORGES E AS VEREDAS QUE SE BIFURCAM

Borges: Um Ensaio Fractal
"...que está página?...é, de algum modo mágico, o dom do inacessível tempo em que se escreveu e, o que sem dívida não é menos íntimo, o do amanhã e do hoje".Jorge Luís Borges Buenos Aires, 13 junho de 1968 Antologia Pessoal
No texto O Jardim das Veredas que se Bifurcam, Borges brinda-nos com um relato metafísico que abala as concepções de linearidade temporal presentes na física clássica; o tempo mostra-se caótico, fractal, nos moldes de Ilya Prigogine, no livro O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza¹. A narração é iniciada com a imposição verossimilhança histórica, baseando o relato no livro História da Guerra Européia. Inicialmente, Yu Tsun - chinês craido num jardim labiríntico de Hai-Feng, neto de Ts’ui Pên - vê-se perseguido por Madden, agente da inteligência inglesa. Yu, tentando realizar a sua última missão, contata um sinólogo - Stephen Albert - o qual lhe apresentará a obra de seu avô, um livro e um labirinto. Considerando os constituintes estruturais da prosa de ficção: personagem, foco narrativo, tempo e espaço; o terceiro elemento será o fulcro da nossa análise, buscando estabelecer um paralelo entre o o tempo - no relato - e a Teoria do Caos. Antes de adentraro ponto principal (livro e labirinto), é curioso notar o percurso do protagonista antes de conhecer o sinólogo: Yu, caminhando por um labirinto, torna-se "conhecedor abstrato do mundo",ocorre a anagnóriks aristotélica, passagem do não saber ao saber, do desconhecedor ao conhecer. Após essa peripécia, o romance de seu avô, "O Jardim das Veredas que se Bifurcam", vem à tona. Albert explica a estrutura do romance partindo de uma citação de Ts’ui; "Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam"*. A partir daí percebe-se a opção de Pên, o protagonista de sua narração não se decide apenas por uma ação, mas simpor todas, tornando quaisquer futuros possíveis. Ts’ui não escreveu um livro e nem edificou um labirinto; criou um livro-labirinto que funciona como símile do tempo espiralado, sendo possível pular de uma parte para outra sem ocorrer perda do nexo. O tempo é alinear, espiralado; é possível ao seu redor traçar minúsculas e infinitas semiretas, cada uma convergindo para uma possibilidade, um futuro, um vórtex, transmudando-se num fractal. O NJR, convencido da importância da interdisciplinaridade, busca, através de seus estudos, divulgar a arte e a ciência, atualizando seu pensamento com obras como a de Catherine Hayles², que discute os paralelos entre áreas anteriormente díspares.
RENATO PIGNATARI
* Ts’ui utiliza o termo futuro numa semântica temporal; também é possível levar em consideração uma sinonímia com linhagem (observar o aspecto futuro do termo).
Notas bibliográficas1. PRIGOGINE. Ilya. O Fim das Certezas: Tempo, Caos e as Leis da Natureza. São Paulo, Ed. da Universidade Paulista, 1996.2. HAYLES, N. Catherine. Chaos and Order. Complex Dynamics in Literature and Science. Chicago/LOndon, The Chicago Univ. Press, 1991.
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segunda-feira, novembro 27, 2006

COMPLEXIDADE E ALEATORIEDADE

http://www.cs.auckland.ac.nz/CDMTCS/chaitin/investigacion_y_ciencia.pdf

Os trabalhos de Gregory Chaitin em Complexidade algorítmica mostram a impoetância do teorema de Gödel para a ciência. Ver o Artigo.

sábado, novembro 25, 2006

OS LIMITES DA RAZÃO

Geralmente se tem a idéia de que devemos uma respeitabilidade incondicional às ciências, especialmente à matemática e à física. Mas uma pitada de desconfiança não faz mal : http://www.cs.virginia.edu/~robins/The_Limits_of_Reason_Chaitin_2006.pdf E desta forma viajamos distante dos centros superpoderosos e acima de nossas rizomáticas cabeças saldosas de comandos inteligentes.

quinta-feira, novembro 23, 2006

FILOSOFIA

O PRINCÍPIO DA RAZÃO DURANTE: O MOVIMENTO COMO SUBSTÂNCIA DAS FRONTEIRAS.Ciro Marcondes Filho
1. Fumaça e cristal
A história da civilização ocidental é a própria história da luta pela autoimposição do racionalismo como modo dominante de pensar. Em todo seu transcorrer ocorreu o conflito entre as visões de mundo que apostavam na estabilidade, na consolidação, na cristalização de fenômenos, processos e desen-volvimentos, e a perspectiva do movimento, da mutabilidade, da permanente transformação. De forma simplificada, a lógica das pedras contra a lógica das águas , em que, em um vasto período histórico o vivo teve de ceder lugar ao morto, o novo ao velho, a criação à repetição.Platão é o primeiro - como chamou atenção Nietzsche em sua "história de um erro" - a separar subjetividade de objetividade, apontando a existência de uma razão acima de nós. Seu modo de pensar e a ruptura entre o sujeito pensante e a coisa pensada vai encontrar seu desenvolvimento mais avançado nos pensadores pós-renascentistas, que apostam na matematização do real. É Descartes, dizendo que nada ocorre sem causa; o empirismo, afirmando que a alma é uma tábula rasa e vazia de caracteres; é Newton, o pai do positivismo moderno, assentando inamovivelmente as bases de uma teoria imobilista (demônio de Laplace) da não-mudança. A determinação com que Newton se impõe na ciência moderna será de tal monta que seus pressupostos de harmonia uni-versal e do movimento eternamente repetidos da mecânica celeste irão se es-tender até o século 20, quando os abalos da teoria do caos e da mecânica quân-tica imporão uma necessária relativização de seus pressupostos.A lógica das águas, que estava hibernando desde os pré-socráticos (He-ráclito) e Lao Tsu, vai encontrar então um primeiro renascimento na filosofia idealista alemã (o idealismo objetivo de Hegel), o primeiro a admitir, questio-nando a imutabilidade kant-newtoniana do real, que os processos são tão ou mais importantes que as estruturas.O conflito entre os mecânico-estatísticos e os termodinâmicos no campo da física marcará essa mudança de rumos, desta vez fora do âmbito da espe-culação filosófica. Poincaré, dizendo que a infecção dos sistemas é algo deles mesmos, nada de alienígena, questionará as bases de uma mecânica perfeccio-nista, cuja estabilidade se baseava necessariamente na interferência de fato-res estranhos ao sistema, que, não só o mantinham impune bem como expeliam para fora tudo o que fosse estranho. O paralelismo dessas concepções da ciên-cia física com as correntes conservadoras da sociedade da época não é casual.A lógica das águas firmará posição na importância do imprevisível, do probabilístico, do aleaório. Para os termodinâmicos, apoiados na Segunda Lei, o cosmos é um campo morno, com partículas sem sentido, sem nexo, sem forma , situação em que o caos vence a ordem.A física quântica, que se desenvolverá plenamente no século 20, será a responsável por algumas "heresias" teóricas que fizeram com que a mecânica celeste caísse no campo dos conhecimentos relativos e setoriais: o fato de va-riáveis ocultas determinarem o movimento dos elétrons, de propriedades on-dulatórias serem o caráter coletivo do movimento, de existir a dualidade onda-partícula.No campo epistemológico, o positivismo lógico é filho legítimo da lógica newtoniana. Ele estabelece para a ciência a intolerância teórica das disciplinas exatas da época, excluindo do campo da legitimidade científica tudo aquilo que não poderia ser observado e verificado de acordo com o princípio platônico de separação radical sujeito-objeto. Filosofia, psicologia, ciências humanas em ge-ral não eram ciências mas formas especulativas semelhantes aos saberes eso-téricos. Tais são os princípios que regeram o Círculo de Viena e seus principais componentes: Carnap, Russell, Wittgenstein.Mas Karl Popper lançará, na primeira metade do século 20, as primeiras contestações contundentes a esses princípios, ao afirmar que a observação di-reta também deturpa a investigação e que as evidências podem ser mutiladas. Uma ciência, para ele, se baseia em declarações falsificáveis, a saber, refutá-veis, e todo o edifício científico é provisório. Outra não é posição de Thomas Kuhn, ao estudar a lógica das revoluções científicas, afirmando que não se pode sair em busca de estruturas permanentes e que outros saberes podem ser igualmente legitimados na busca da descoberta e da inovação. Além destes, Paul Feyerabend reforça a posição, defendendo que não há método universal-mente válido.Estas críticas à epistemologia clássica e ao seu posicionamento, excluin-do do campo do conhecimento os saberes que não se submetiam a seus critéri-os lógicos, formais, empírico-racionais, vieram das primeiras formulações do caos (Poincaré) e da teoria quântica (Heisenberg, Bohr), assim como, posterio-remente, da teoria da incompletude (Gödel) e das novas lógicas que surgiram e que se firmaram na metade do século. A dependência hipersensível às condi-ções iniciais, a lógica da complexidade, da auto-organização e da autopoiese, entre outras, instituem modelos intermediários nas fissuras do determinismo clássico.O cristal cede lugar à fumaça , o movimento turbilhonário torna-se mais pertinente que o fluxo regular da água, o não-linear impõe-se e sobrepõe-se ao linear. O pêndulo, que era símbolo da exatidão matemática do movimento osci-latório regular, torna-se "exceção", parte menor e menos representativa dos fenômenos físicos; sua trajetória é menos atraente do que as trajetórias in-certas e aleatórias dos pêndulos de duplo plano . Opera-se, assim, uma virada radical no princípio da lógica científica: o que prevalece agora não é a busca das regularidades, das repetições, dos processos constantes, e, portanto, daquilo sobre o qual o homem se torna senhor na natureza. De agora em diante, os ci-entistas passam a ficar despertos aos processos e à sua liberdade, à indeter-minação, à imprevisibilidade, a tudo o que foge dos mecanismos uniformes e, desta forma, causam estranheza.
2. Ordem: uma herança teológica
O movimento, efetivamente, não pode ser excluído, sequer minimizado, na observação dos fenômenos físicos, sociais, mesmo subjetivos, pois todos os organismos vivos estão em movimento. Movimento sistêmico, caótico ou perió-dico, em tudo há uma força impulsionando, todos são sujeitos a maiores ou me-nores oscilações. Movimento é o mesmo que vida. Por isso os sistemas são estacionários, periódicos ou caóticos: alguns pa-ram, outros buscam órbitas estáveis, outros ainda seguem em direção a mudan-ças. Os sistemas regulares, que possuem força periódica e têm uma órbita es-tável, as têm descritas como atratores. Diferentemente, sistemas com traje-tórias diferentes têm órbitas nada estáveis, na forma de atratores estranhos.Os sistemas caóticos, contudo, significam para muitos cientistas formas que acabam por apresentar, num determinado momento, uma regularidade em forma de ordem. A corrente mais conservadora da teoria do caos acredita que sempre haja uma ordem escondida por trás dos processos caóticos e que ela necessariamente emergirá num determinado momento. A corrente dita "menos conservadora", a de Ilya Prigogine, acredita que a ordem é algo que se instala no sistema a partir de uma interveniência externa, por meio dos ruídos, que exigem que o sistema reaja e encontre sua nova forma, mais complexa, na sua própria auto-organização.Mas não estaria a busca dessa ordem novamente apelando nostalgica-mente para a localização de regularidades, de repetições, da ciência clássica? Não seria essa procura uma obsessão permanente do cientista - e do ser huma-no em geral - por algo que o assegure, que o tranqüilize? É sabido que o concei-to de ordem é uma criação humana e equivale à busca da noção de coerência, quando o que rege aparentemente a natureza - (como já afirmou a segunda lei da termodinâmica) - parece ser, ao contrário, uma alta tendência à desordem .
3. Precedência das ambigüidades
Todo esse ataque à ciência que se pretendia soberana, acima dos fenô-menos e subsumindo-os, conduziu a um repensar da própria atividade do inves-tigador diante da precedência dos fatos e dos fenômenos em relação a ele pró-prio. Levou a uma postura que - combinada à falência do humanismo, à crise dos ideais emancipatórios e a todos os mitos que envolveram o despertar científico do início do século 19 (progresso, evolução, razão, teleologia, história, homem) - se alinhava ao pensamento deste século, muito mais modesto em relação às ca-pacidades humanas diante das máquinas, muito mais crítico em relação aos des-envolvimentos da ciência e muito mais consciente das verdadeiras capacidades de pesquisa do ser humano. A crise do humanismo, inicialmente sinalizada por Nietzsche e posteri-ormente complementada pelo discurso de Heidegger contra a despersonaliza-ção da sociedade de massas, contra a técnica como "nova metafísica", repre-sentou uma posição menos soberana do observador e um olhar mais igualitário ao seu objeto de pesquisa. Propõe ao desenvolvimento científico desfeito dos mitos de controle, de dominação e de previsibilidade, que neste momento pre-cisa dar conta de outras lógicas e outras visões concorrendo pela investigação do mesmo fenômeno. Trata-se das ambigüidades que passam a fazer parte também da observação científica e que precisam ser consideradas se se quiser melhor conhecer o real.Inicialmente, a ruptura da relação de identidade que foi herdada da lógi-ca formal. Se nos ativermos à regra que "o ser é" e "o não-ser não é", estare-mos presos a processos mentais e de investigação que perdem todas as mani-festações marginais : os fenômenos que se comportam de uma forma, mas são efetivamente outra forma. Nem mesmo a lógica contraditória, de filiação he-geliana, apreende os novos processos, pois supõe necessariamente a exclusão de um dos dois elementos. Na lógica paradoxal, entretanto, é-se costumeira-mente colocado diante de situações que são e não são ao mesmo tempo. Isabe-lle Stengers fala da "oscilação das identidades" dos átomos, da ADN, dos neu-trinos como exemplificação de processos que se transformam, que são eles mesmos e seus opostos, conforme são observados, acompanhados, estudados. Trata-se, neste caso, da ambigüidade ontológica que objetos de investigação eventualmente assumem, desconcertando aqueles que buscam certezas e defi-nições unívocas.Mas também as medições podem nos enganar. Paul Watzlawick fala que nós vivemos constantemente em múltiplas realidades e que é um mito acreditar na existência de uma única delas. A física quântica apresenta os exemplos mais contundentes dessa impossibilidade de confiança nos nossos instrumentos de medição, ao afirmar que é a consciência dos homens que determina os fenôme-nos quânticos. A medição, diz ela, jamais é a mesma e um objeto tem diferen-tes medidas conforme a distância que se tome dele (exemplo da costa da In-glaterra, como dimensões fractais). Da mesma forma, não se pode medir duas qualidades ao mesmo tempo: se eu meço o tempo, a energia será necessaria-mente imprecisa. Mais além, físicos quânticos afirmam que a manifestação de um determinado fenômeno é absolutamente imprevisível até advir a interfe-rência do observador (caso do gato de Schrödinger e outros exemplos de su-perposição de estados quânticos). A intervenção do observador provoca o que eles chamam de "desmoronamento da função de onda": é o caso do olho ou do cérebro humano, que modifica a função de onda de um elétron observado. São exemplos de ambigüidades epistemológicas e observacionais que põem em xe-que qualquer ilusão de certeza a partir das medições em laboratório.Mas também toda uma metodologia pode sofrer dessas ambigüidades. Se colocada a opção entre reducionismo ou holismo cai-se fatalmente no chamado "dilema da dupla escolha", que força necessariamente a opção, excluindo do campo dos prováveis todo o espectro de situações intermediárias e mesmo so-brepostas. Acima falou-se do fato de a mecânica celeste newtoniana ser hoje válida apenas para grandes extensões; ela já não exclui mas obrigatoriamente convive com a mecânica quântica, a das partículas subatômicas, que, em princí-pio, a refuta. Assim, rechaçando o demônio de Laplace - segundo o qual, a par-tir da posição e da velocidade num determinado tempo de um certo fenômeno pode-se chegar a todas as previsões possíveis a respeito dele - somos levados, inevitavelmente, a aceitar outra lógica, a zen-budista (do tipo: "a coisa não pode ser expressa em palavras e não pode tampouco ser expressa sem pala-vras"), que considera a imprevisão e os processos indeterminados. A ambigüidade metodológica remete necessariamente às "proposições indecidíveis" de Kurt Gödel, segundo as quais nenhum sistema poderá ser ao mesmo tempo completo e consistente. Ou seja, os sistemas matemáticos não podem dar conta de todas as verdades matemáticas; haverá sempre um conjun-to de axiomas que estará fora de seu sistema. Transposto para o plano dos fe-nômenos sociais ou culturais, significa dizer que nenhum método, se quiser ser preciso (consistente) o poderá sê-lo se pretender ser capaz de explicar todas as coisas. Há limites, ou seja, planos que estão logicamente acima desses mes-mos métodos e só estes têm condições de explicá-lo.Finalmente, o desenvolvimento das ciências e as incapacidades episte-mológicas dos campos do saber - que pretendiam abarcar todo o conhecimento ou, pelo menos, estabelecer regras válidas para todo o saber - acabaram por reconhecer uma autonomia relativa de seus objetos, de tal forma a vê-los difi-cilmente apreensíveis em sua totalidade. Os objetos escapam de nossas mãos, são "fatiches", como diz Bruno Latour, fatos e fetiches ao mesmo tempo. Mes-mo Blaise Pascal dizia já que qualquer objeto que pensamos apreender escorre-ga-se entre nossos dedos em fuga eterna. Como exemplo da ambigüidade feno-menológica, os físicos se usam do exemplo dos elétrons, personagens estra-nhos, dos quais mesmo só se conhece o saltar de órbita em órbita, mas jamais eles próprios.
4. Um "quase-método"
Tudo leva a crer que diante de todas as trepidações da mudança cientí-fica e das ambigüidades haveria de se pensar um outro método. Mas como isso é possível se um método é algo sempre comprometido com uma visão de ciên-cia? Se não dá para dissociar forma da pesquisa de seu conteúdo? A isso se soma a dificuldade com o incerto, já apontada por Dietmar Kamper: as ciências humanas têm um dilema bastante específico, o de tentar explicar processos que em sua natureza são incontroláveis e autônomos.Na busca de uma direção para considerar essas transformações no esta-tuto da ciência, de sua lógica e de seu objeto, assim como de incorporar fatos extracientíficos na investigação, pode-se alistar algumas procedimentos de controle na busca de um "quase-método", a ser desenvolvido futuramente:Feyerabend fala da necessidade de um "vale tudo" na ciência, de uma forma assumida de "oportunismo", ao se referir ao fato de que a ciência não tem por que fazer cortes, restrições, seleções entre os campos do conheci-mento. Todos são a priori válidos e devem ser levados em consideração.Além disso, há que se romper as fronteiras dos campos do conhecimento. O pensamento deve ser nômade (Vilém Flusser), conceito que lembra o andari-lho de Nietzsche e essa liberade de poder transitar por todas as áreas sem preocupação de fronteiras e de limites territoriais do saber.Medawar diz que um cientista deve "contar histórias". Uma teoria cientí-fica é uma narrativa e nesse aspecto a ciência aproxima-se da ficção; é igual-mente um relato. Da mesma forma, a literatura pode igualmente dar apoio às ciências exatas ou sociais. Tem sido habitual, especialmente nos Estados Uni-dos, o uso de narrativas literárias para ilustrar, exemplificar e melhor esclare-cer conceitos da teoria do caos, da complexidade.A recusa das escolhas duais (Watzlawick), apontado anteriormente, a consideração de que o real é necessariamente múltiplo, complexo, um emara-nhado de diferentes tendências, fluxos, movimentos, histórias, etc. e a obser-vação de que os dados também podem nos manipular encerram o quadro de in-dicações para se pensar uma nova ciência e um novo procedimento de pesquisa.
5. O princípio da razão durante
Gilles Deleuze, ao discutir a possibilidade do sentido, fala que o sentido está "na fronteira", em vez de alturas e profundidades, importa a ele a super-fície de contato, o avesso que continua no direito. Trata-se da linha que separa as coisas das proposições sobre elas. Paul Valery, por sua vez, fala do movimen-to, daquilo que não é nem vida nem morte, mas está "entre eles".
Nem na vida, nem na morte: na fronteira e, para nós, a fronteira é sinô-nimo do movimento.
Nossa proposição teórica e epistemológica instala-se na confluência das duas posições, na captação do princípio que está no pensamento de Heráclito, na afirmação dos processos e na possibilidade de sua apreensão somente e en-quanto processos. Busca de reconhecimento do movimento, da instabilidade, da oscilação em seus múltiplos níveis. Não se trata de radiografar a lógica do mo-vimento, como tentou fazer o estruturalismo, congelando processos; trata-se antes de filmar, operar junto, dançar no compasso e na mesma velocidade. Do ponto de vista epistemológico tornou-se, assim, mais prudente admi-tir a incerteza estrutural, incerteza essa tomada menos como insegurança do que como espaço de possibilidades. A incerteza estrutural caracteriza um es-tado de permanente não-consolidação, de contínua vivacidade e flexibilidade para absorver nossos saberes e se reconstituir.Somos conscientes de que a razão durante não é descoberta nossa. Ela sempre existiu e foi produtora da inovação científica. O que ocorre é que os pesquisadores jamais deram atenção a esse momento, ao momento criativo da ciência. Alguns teóricos importantes, como Henri Atlan, atribuem grande im-portância ao "delírio" intelectual, àquelas especulações livres, criativas, inspi-radoras, que deram crédito às intuições e chegaram, assim, às teorias verda-deiras. Mas aqui ainda estamos no campo do conhecimento individual. A razão durante, em verdade, é o momento criativo que emana de um processo grupal, coletivo, da discussão científica. É o produzir espontâneo, inesperado, como a totalidade leibnizana (maior e diferente do que a soma das individualidades), que produz a partir da circulação de idéias, conceitos, suposições, argumentos dos mais diversos e que é impensável do ponto de vista isolado, do pesquisador em seu gabinete de trabalho. Este também pode ter - e normalmente tem - suas constatações, seus resultados, seus insights, mas neste caso se trata de deduções simples, produtos necessários do conjunto de fatos novos postos em contato com um equipamento teórico anterior. O conhecimento aqui, não obs-tante, não vem de ruídos instantâneos, emergentes, novos, da mística e da ma-gia do "estar em comum" e de suas amplas possibilidades de fazer emergir o inesperado.É na instabilidade, na imprevisilidade, no jogo com o incerto que se ins-tala esse tipo de "dependência hipersensível das condições iniciais". Os partici-pantes de um debate, juntos, lançam suas proposições, suas hipóteses, que atu-am como os projéteis em física, em que as interferências daqueles lançados pelos demais levam a derivações secundárias, terciárias das proposições, a no-vas sínteses, agora num campo do altamente inimaginado, tão inusitado como a trajetória do pêndulo de duplo plano.Mas há uma correlação entre o princípio da razão durante e os próprios processos sociais, que não se deixam captar senão no próprio momento de sua realização. Tudo o que é vivo é fluxo, são trocas internas, é uma força impulsi-onante, são as pequenas e grandes flutuações. Viver é necessariamente trocar com o ambiente externo e se readaptar internamente. A razão durante, assim, aplica-se àquilo que está pulsando, àquilo que é vivo. De certa forma, tem seu enunciado correlacionado ao "princípio do Mal", de Baudrillard, para quem todas as espécies de acontecimentos estão aí, imprevisíveis, e ao investigador não resta outra coisa senão "esperar que esses acontecimentos se deixem apa-nhar".O pensador francês está pensando na "inapreensibilidade do objeto", objetos que estão tão "metafisicamente longínquos" que só despertam fosfo-rescência nas telas e que, para captá-los, seria preciso fazer da própria teoria "uma coisa estranha" . Para nós, a teoria deve igualmente ceder ao objeto, aos seus caprichos e ao seu aparecimento fortuito. Mas, acima de tudo, trata-se de estar sentindo seu movimento, acompanhando seus passos e seu deslizar, pois crê-se que a essência está na vida, nesses lapsos fulgurantes de brilho e de fosforescência.Por isso, a razão durante é tudo isso: tanto o pensamento como os obje-to, captá-los em seu movimento vital, em sua luminosidade rara, em seus mo-mentos de especial sucesso. E isso só se consegue através da captação sincrô-nica do novo.
6. A extravida do "depois"
Toda ciência cristaliza-se em artigos, teses, documentos, livros. São formas de registro e todo registro é necessariamente um documento final, um testemunho de morte, pois ali a coisa já não vive. Já não há mais a pulsação, a instabilidade, a provisoriedade, o incerto que caracteriza todos os espaços da razão durante. Tem-se, ao contrário, a cristalização, a transformação em algo perene e imutável.Mas assim são também os filmes, as fitas gravadas, sem contar os tes-temunhos mais antigos da civilização, as obras da literatura, da filosofia, do teatro, da pintura, que apesar de serem registros ainda nos comovem. É preci-so, portanto, distinguir entre o que se entende aqui por "vivo".Há um vivo orgânico, marcado pela permanência da energia vital, pela força que move, pela transformação advinda do envelhecimento; é o mesmo vivo da razão durante, dos espaços intelectuais das discussões, dos fenômenos es-tranhos que se procura captar com nossas armadilhas epistemológicas, o vivo que nos surpreende, que se auto-organiza para aumentar seu nível de complexi-dade, o vivo da pulsação, do élan vital, o vivo tanto dos seres orgânicos (que atravessam todos os estágios da vida reprodutiva e mesmo cuja morte dá ori-gem ao aparecimento de outros seres vivos, num ciclo contínuo da natureza) como dos fenômenos físicos e sociais.Mas há uma extravida nos objetos mortos, nos processos de registro do ser vivo, nos sistemas estéticos e culturais de preservação. As obras de arte, a literatura, os registros em banda sonora, em películas, em arquivos digitais re-cuperam um plano da atividade vital e o perenizam: se trata não mais, eviden-temente, da dimensão inusitada, inesperada, supreendente. Aquela que marca o novo, o jamais tido ou conhecido antes. Se trata, isso sim, da dimensão que se aloja nesses objetos e sua capacidade metonímica de se transferir a nós, seres vivos. Há como que uma extravida, uma repercussão "fantasmagórica" de todos esses objetos sobre nós, simulando os efeitos da vitalidade real. Mas nem por isso são menos estimulantes, envolventes, transformadores. O único fato é que dos processos mortos só emanam sinais conhecidos, que se misturam com nos-sos sinais presentes e os transformam; funcionam, da mesma forma, como os repertórios dos cientistas antes de se envolverem em procedimentos da razão durante. Lhes falta, isso sim, o pôr em contato, o ato de mesclar esses sinais com sinais vivos num movimento único em que tudo se transforma.A grande vantagem das vivências puras, não-cristalizadas, não registra-das, é que elas ainda não são nada, não ganharam nome nem consagração, não viraram mitos nem clássicos, e por não serem coisa alguma guardam essa pure-za do ato livre, descomprometido, cambiável, jovial. O princípio da razão durante é a tentativa de trabalhar com o que não se instituiu, que guarda a naturalidade das vibrações, dos ventos, dos ecos perdidos, dos rumores desconcentrados: daquilo que a simbolização, as instituições, a classificação ainda não esterilizou, daquilo que não perdeu sua força, que dança por espaços não esquadrinhados, que é energia, tônus, vivacidade, animação, força vital. É a história construindo cada vez novas formas, novos estilos, novos temas mas que remetem, num alucinante jogo de alternâncias e recorrências, à recolocação das questões vitais: dominação, conflito, prazer, esperança e trabalho.(setembro de 2000)

segunda-feira, novembro 20, 2006

PERDEMOS A CAPACIDADE DE SENTIR?

Vivemos Paralisados pela Inveja - José Gil
Revista PÚBLICA16/1/2005
Paulo Moura
Pública (P.) — Depois da leitura do seu livro, é impossível não se ficar deprimido.
José Gil (R.) — Hesitei muito antes de o publicar. Decidi fazê-lo, porque acho que estas coisas devem dizer-se publicamente, e não apenas em circuitos fechados, como habitualmente. E também porque penso ter encontrado um fio condutor, que dá unidade a tudo o que afirmo.
P. — É aquilo a que chama "não inscrição". Que significa?
R. — Significa que os acontecimentos não influenciam a nossa vida, é como se não acontecessem. Por exemplo, quando uma pessoa ama, esse sentimento não afectar a outra pessoa, objecto do amor. Quando acabamos de ver um espectáculo, não falarmos sobre ele. Quando muito, dizemos que gostámos ou não gostámos, mais nada. Não tem nenhum efeito nas nossas vidas, não se inscreve nelas, não as transforma. Ainda outro exemplo: o primeiro-ministro, Santana Lopes, classificou a dissolução da Assembleia da República pelo Presidente como "enigmática". Não disse que era incorrecta ou injusta, mas "enigmática", o que é a forma mais eficaz de a transformar em não-acontecimento.
P. — E, não tendo acontecido, ninguém é responsável.
R. — Exactamente. Pode-se continuar como se nada se tivesse passado. Os acontecimentos não se inscrevem em nós, nem nas nossas vidas, nem nós nos inscrevemos na História. Por isso, em Portugal nada acontece.
P. — Isso vem de onde?
R. — Do medo. E da falta da ideia de futuro. Vivemos num presente que se perpetua. Não se inscreve em nós o futuro nem o passado, a História. Porque temos medo.
P. — E de onde vem o medo?
R. — Uma vez fiz essa pergunta a José Mattoso. Perguntei-lhe se vinha do salazarismo. Ele respondeu: "Muito antes disso." Mas não precisou de onde. Acho que ninguém sabe. Claro que no chamado "antigo regime", ou no feudalismo, imperava um medo real, físico.
P. — Mas isso acontecia em toda a Europa. Específico de Portugal é esse medo não ter cessado?
R. — Sim. Existiu durante o salazarismo, que vivia do medo. Tínhamos medo de tudo.
P. — Mas era um medo hierárquico, de cima para baixo. Como se transformou num medo do nosso semelhante?
R. — Acho que no salazarismo já havia um medo do semelhante, além do hierárquico, que desapareceu, porque estamos numa democracia. Mas herdámos o medo, que se transformou. Acho que a principal razão foi por que não criámos suficientes instrumentos de expressão.
P. — É através da expressão que nos podemos livrar do medo?
R. — Nós temos uma pobreza enorme de expressão em relação à nossa existência. O que sabemos de nós, hoje, é pouquíssimo. Por exemplo: o que uma mulher pode sofrer, com a sua condição de inferioridade social, com os dramas domésticos... Tudo o que se diz, mesmo o que aparece na literatura, não exprime o que ela poderia sentir, e acaba por fazer com que ela não possa sentir o que verdadeiramente sente.
P. — Não pode sentir, porque não o pode exprimir?
R. — Sim. A expressão abre para o fundo, não apenas para fora. Mas nós estamos agarrados a um texto e não temos forças para sair dele.
P. — Uma espécie de norma?
R. — É o texto da sociedade normalizada, do bom senso, do política, social e afectivamente correcto. Assisti há dias a uma discussão de um casal, num jardim. O marido dizia-lhe: "Não aqui! Não aqui!" E a mulher calava-se logo. Temos um texto que nos diz o que podemos viver.
P. — É o medo que nos impede de rasgar esse texto?
R. — Nós temos medo de experimentar. Porque temos medo do que irão dizer de nós. Partimos sempre do princípio de que o que vão dizer é negativo, desvalorizante. Dificilmente alguém dirá: "Que bom o que tu fizeste. Estou muito contente." Não. Vão-nos decerto criticar. Isso cria logo um medo que nos paralisa. Faz com que tenhamos prudência. Bom senso.
P. — Mas a prudência e o bom senso poderiam ser atitudes positivas, para nos guiarem na acção...
R. — Qual acção? A prudência paralisa a acção.
P. — Então não é uma verdadeira prudência.
R. — Pois não. A verdadeira prudência seria uma estratégia para medir e modular a acção, à medida que ela se desenrola. Mas nós não queremos é agir. Porque a sociedade portuguesa, ao contrário de outras, é fechada, não tem canais de ar, respirações possíveis. É uma sociedade suavemente paranóica. As pessoas estão demasiado conscientes de si próprias, o que é um horror. Conscientes da imagem que possam produzir, da sua presença como imagem nos outros. Isso é paralisante.
P. — Damos muita importância à nossa imagem?
R. — É uma obsessão. Estamos sempre a falar da auto-estima, esse termo horroroso.
P. — O que há de errado com a auto-estima?
R. — Essa ideia reflexiva, de nos amarmos a nós próprios... Em vez de estarmos virados para fora, para os outros, para o mundo. Só nos podemos afirmar agindo, exprimindo-nos - não voltando-nos para a autocomplacência. Tudo o que é válido vem "de fora". Nós ainda temos essa ideia de que é preciso começar por uma transformação interior... Mas, em Portugal, não existe um "fora".
P. — Isso quer dizer que não existe um espaço público?
R. — Não, não existe. O salazarismo extinguiu-o. Depois do 25 de Abril, passámos do zero para o máximo de expressão. Mas não tínhamos os instrumentos para essa expressão. Por isso, as forças reais do poder-saber, políticas, voltaram a dominar. Toda a nossa expressão individual, social, passou a reduzir-se ao discurso político. E no espaço público instalou-se em força um dispositivo que ocupou o lugar todo: a televisão, e os "media" em geral.
P. — Os "media" não são espaço público? Funcionam em circuito fechado?
R. — Movem-se em circuito fechado. Têm uma acção de absorção. Só se existe se se aparecer na televisão. Mas estar e aparecer na televisão não é a mesma coisa do que viver a vida, na materialidade das ruas e do tempo.
P. — Mas isso não é um fenómeno exclusivamente português.
R. — Não, mas em Portugal a televisão criou um espaço de imagem antes de termos passado por aquilo a que podemos chamar um "espaço de terrível liberdade", de experimentação, de inscrição, que foi a modernidade.
P. — Houve um salto. Mas isso nunca se vai recuperar.
R. — Com certeza que não se vai voltar atrás. Mas é preciso recuperar aquilo que nos é sugado por esse espaço de imagem e que é a vida dos corpos. Os acontecimentos da existência, no que têm de invenção. Na televisão tudo está formatado, não há imprevisto, encontro. O acontecimento é o resultado de um encontro. Mas nós temos medo do acontecimento. Medo da mudança, medo do futuro, medo do julgamento dos outros, medo de não sermos capazes. Medo de não estar à altura do acontecimento.
P. — É um medo da responsabilidade, um medo infantil?
R. — Sim, a nossa sociedade tem algo de infantil, mas sem a vivacidade das crianças. É a outro nível que temos de ter vida. O português não é um adulto autónomo por si. Uma comunidade de crianças não é o mesmo que uma comunidade de adultos. Nós ainda não chegámos à comunidade de adultos. Há pormenores... o tratamento por "pá", por exemplo...
P. — Traduz uma grande familiaridade, ou é outra coisa?
R. — É o reconhecimento de que o homem é nu, para usar uma terminologia de Hanna Arendt.
P. — Serve para colocar o outro ao mesmo nível, como que a dizer-lhe: a mim não me enganas?
R. — Sim, e somos iguais. Vou contar-lhe uma cena que me espantou: quando o Jorge Sampaio era presidente da câmara, apareceu na televisão a passear pelo Casal Ventoso com uma série de delegados de Bruxelas. Quando foi abordado por um drogado, disse-lhe: "É pá, afasta-te, que estou aqui a ver se sacamos algum dinheiro a estes tipos." Isto é extraordinário.
P. — Não resistiu a estabelecer uma cumplicidade com o drogado.
R. — Sim, como se ele fosse da mesma...
P. — Laia.
R. — Exactamente, laia. Nós, que somos iguais, inferiores, estamos a ver se sacamos... O Sampaio é muito expressivo de certas coisas portuguesas.
P. — Cultivamos uma intimidade forçada, pouco natural, promíscua?
R. — Sim, há uma promiscuidade social que se deve à falta de autonomia individual. O salazarismo infantilizou-nos, fez-nos viver num mundo fictício e sugou-nos todas as forças. Eu não quero culpar o salazarismo por tudo, mas a verdade é que foram 48 anos de não inscrição, de não acontecimento. E herdámos isso. Ainda não recuperámos. O ambiente em que vivemos não nos permite ter intensidade de vida, de pensamento, de acção, para que possamos inscrever-nos na nossa própria vida, na Europa, no mundo global, etc. Uma vez assisti a uma entrevista com o jovem físico português, João Magueijo, que vive em Inglaterra. A repórter perguntava-lhe: "Você trabalha com matemática, não em laboratórios. Não podia ter descoberto essas teorias em Portugal?" E ele respondeu imediatamente: "De maneira nenhuma. Sabe porquê? Por causa da intensidade das trocas de pensamento em que eu vivo quotidianamente. É isso que me faz pensar."
P. — A influência "do fora".
R. — Absolutamente. É essa intensidade que nos falta. Nós somos tão inteligentes como os outros. Somos inventivos, produzimos. Mas caímos nisto.
P. — A incapacidade de agir vem de dentro, do nosso medo. Mas, quando alguém tenta, o que acontece? Temos a aprovação ou a sanção dos outros?
R. — Uma sanção terrível. É o mecanismo da inveja.
P. — Não agimos, mas também não deixamos ninguém agir. Como funciona esse mecanismo?
R. — O mecanismo da inveja tem a ver com práticas da magia, o "mau olhado", o "quebranto", e também com o que em psiquiatria se chama "transferência psicótica", ou seja, o que passa de uma pessoa para outra e não é verbal. Imagine que você chega ao pé dos seus colegas e diz: "Fiz uma reportagem extraordinária!" E não está a falar por vaidade, mas objectivamente. Mas logo o tipo que está a seu lado diz: "Ai sim? Pois muito bem." E com este tom introduz em si um afecto inconsciente que o vai paralisar.
P. — É um mecanismo semelhante ao do ostracismo?
R. — Exactamente. Cria-se um ambiente que é hostil à iniciativa e que tem um efeito sobre a própria vontade de querer fazer. Isto é generalizado em Portugal. A inveja é mais do que um sentimento. É um sistema. E não é apenas individual: criam-se grupos de inveja. Várias pessoas manifestam-se simultaneamente contra a sua iniciativa. Cria-se um ambiente de inveja. Um grupo determinado age segundo os regulamentos da inveja.
P. — É uma atitude concertada ou inconsciente?
R. — Pode ser concertada ou inconsciente, mas funciona. Não se permite que numa empresa, num escritório, ninguém ultrapasse a linha da média baixa. Vivemos reconhecendo-nos como irmãos na desgraça.
P. — Mas por que se faz isso? Não seria do interesse de todos encorajar cada um a fazer melhor?
R. — Sim, mas há um efeito de espelhos. Se você faz alguma coisa de forte, isso deveria ser um estímulo para mim, para fazer algo também forte. Mas não. Vê-lo forte diminui-me a mim. Vê-lo com intensidade, com iniciativa, faz-me pensar, por causa da imagem que tenho de mim, na minha pobre condição, em que não faço nada. E faço tudo para destruir a sua iniciativa, para que eu possa viver. Você sufoca-me com a sua energia. Terrível isto. Uma pessoa sufoca a outra com a sua energia. E o resultado é que estamos todos sem energia.
P. — Mas para que essa acção da inveja tenha efeito não é necessário que a "vítima" esteja vulnerável?
R. — Precisamente. Um etnólogo pôs-me essa questão. Disse: só se é afectado pela inveja quando se quer, quando se está num estado determinado. Eu respondo: sim, em quem tem a pele grossa não entra nada. São as pessoas porosas que são fragéis. E isso é típico de Portugal. Os portugueses são sensíveis, porque não são maduros. Isso poderia ser maravilhoso. Somos pessoas de pequenas percepções, de intuições imediatas, e por isso sentimos quando alguém está a torcer para que não avancemos. Faz curto-circuito, fecha o espaço das possibilidades. É um sistema.
P. — Uma espécie de acordo tácito para que ninguém aja, ninguém ameace, e possamos viver em paz.
R. — Precisamente. Para que possamos viver em paz. Porque temos medo do conflito.
P. — Daí os "brandos costumes"?
R. — Recusamos o conflito a céu aberto, mas temos uma violência incrível na nossa sociedade. Violência doméstica em relação às crianças. Os brandos costumes escondem uma violência subterrânea enorme.

ÉTICA E MORAL

A Ética como potência e a Moral como servidão



Por psicopr
26 de abril de 2005
Luiz Fuganti
Ao primeiro sinal da palavra ética o que salta à atenção comum do cidadão é um chamado para que ele, ao ponderar seu sentido mais freqüente e ordinário, procure ascender a uma postura de vida e de comportamento que por princípio o colocaria no caminho do Bem, seja de natureza espiritual, seja um Bem para a humanidade ou, simplesmente, uma disposição por parte daquele que é qualificado com atributos ditos éticos, a assumir um comportamento que tenderia para o tão propalado bem comum da sociedade em que vive.

Bastaria, para isso, apenas seguir o referencial da Lei, com o ideal de igualar-se a sua pura forma e introjetar seu paradigma universal. Mas ao mesmo tempo em que esta concepção do senso comum é compartilhada como sendo a que melhor conduz o indivíduo a um modo de vida responsável e justo, concedendo-lhe o direito a uma espécie de liberdade assistida por fora e vigiada por dentro (como num panópticum ), relativa ao grau de liberdade que a própria sociedade poderia suportar sem ser ameaçada em sua constituição, instaura-se, na mesma proporção, a contraparte de um assujeitamento sutil e inaudito que submete e desvia tanto o desejo quanto mais ele adere, na espera de recompensas ou ganhos, ao modo moralmente útil de ser.

O modo que agrega o indivíduo ao corpo da sociedade, através de uma relação dicotômica de boa ou má vontade para com o corpo de leis, o qual devolve ao indivíduo o troco em forma de recompensas ou castigos, remonta já ao nascimento do Estado. Mas não é apenas o Estado arcaico que cultiva este tipo de código. Pertence a própria natureza do Estado este modo de codificar seus membros pela relação de obediência e transgressão. É por isso que o Estado é um grande estimulador e reprodutor das paixões tristes, como diz Espinosa. É por medo dos castigos e esperança das recompensas que o indivíduo submete-se a um poder que o separa da sua própria capacidade de agir e pensar livremente, desejando sua própria servidão. Ainda que aquele modo se alimente - por pura crença - de investimentos subjetivos de um indivíduo habituado ao esforço cotidiano de sobrevivência, dissimulando concórdias e inviabilizando relações reais de solidariedade ou - por pura conveniência utilitária e objetiva - de investimentos de desejo (de poder) nem um pouco desinteressados (ao contrário do que invoca o sujeito legislador de Kant), desvela-se assim como seu contraponto um comportamento de um tipo de vida inteiramente subserviente, tragado por um círculo vicioso, como num buraco negro, sempre realimentado pela repetição da perda da capacidade de criar as próprias condições existenciais de efetuação de suas potências. É assim que tombamos. Por morder a isca dos "nossos" interesses, interesses de um "Eu", caímos cativos de uma moral que impõe dever a uma instância exterior como o Estado, o Bem, a Lei ou, em uma palavra, a valores de uma época que, apesar de serem criados por uma determinada sociedade historicamente formada, são publicados e estabelecidos como universais e perenes, enfim, transcendentes ao tempo e ao espaço nos quais emergiram.

NIETZSCHE OU A MANIA DEPRESSIVA DA ORGANIZAÇÃO?

A questão importante é se encontrarei uma expansão de vida ou uma impossibilidade dessa expansão.
Ao querer ultrapassar as dicotomias, Nietzsche faz uma crítica aos dogmáticos e as suas afirmações. Isso fica bem explícito na passagem "...o pior, mais persistente e perigoso dos erros a até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem em si" ( Nietzsche, F. Além do bem e do mal, p.8 )
Nietzsche afirma que a decadência da humanidade apareceu claramente com Sócrates, quando estabeleceu a distinção entre dois mundos, pela oposição entre essencial e aparente, verdadeiro e falso. Sócrates "inventou" a metafísica, diz Nietzsche, fazendo da vida aquilo que deve ser julgado, medido, limitado, em nome de valores "superiores" como o Divino, o Bem , o Verdadeiro, o Belo ( O Estado) ( O Direito) Grifo nosso. Com Sócrates, teria surgido um tipo de filósofo voluntário e sutilmente "submisso", inaugurando a época da razão e do homem teórico, que se opôs ao sentido místico de toda tradição da época trágica.
A crítica nietzscheana à metafísica tem um sentido ontológico e um sentido moral, e é um combate à teoria das idéias socrático-platônicas.
Nietzsche tenta resolver a hipertrofia da razão pela inversão de valores, pois inverter todos os valores abala as estruturas morais e relativiza as estruturas do bem. Apesar disso, somente a inversão não daria conta do problema, pois ela ainda mantém a dicotomia e isso não seria suficiente. Portanto, o segundo passo metodológico é a transvalorização de todos os valores, a recuperação da multiplicidade, e aí sim o aniquilamento da dicotomia (binômio metafísico).

domingo, novembro 19, 2006

A ORDEM DO DISCURSO - FOUCAULT


A Ordem do Discurso.
(L’Ordre du discours, Leçon inaugurale ao Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Éditions Gallimard, Paris, 1971.)
Tradução de Edmundo Cordeiro com a ajuda para a parte inicial do António Bento.

No discurso que hoje eu devo fazer, e nos que aqui terei de fazer, durante anos talvez, gostaria de neles poder entrar sem se dar por isso. Em vez de tomar a palavra, gostaria de estar à sua mercê e de ser levado muito para lá de todo o começo possível. Preferiria dar-me conta de que, no momento de falar, uma voz sem nome me precedia desde há muito: bastar-me-ia assim deixá-la ir, prosseguir a frase, alojar-me, sem que ninguém se apercebesse, nos seus interstícios, como se ela me tivesse acenado, ao manter-se, um instante, em suspenso. Assim não haveria começo; e em vez de ser aquele de onde o discurso sai, estaria antes no acaso do seu curso, uma pequena lacuna, o ponto do seu possível desaparecimento.
Preferiria que atrás de mim houvesse (tendo há muito tomado a palavra, dizendo antecipadamente tudo o que eu vou dizer) uma voz que falasse assim: "Devo continuar. Eu não posso continuar. Devo continuar. Devo dizer palavras enquanto as houver. Devo dizê-las até que elas me encontrem. Até elas me dizerem — estranha dor, estranha falta. Devo continuar. Talvez isso já tenha acontecido. Talvez já me tenham dito. Talvez já me tenham levado até ao limiar da minha história, até à porta que se abre para a minha história. Espantar-me-ia que ela se abrisse."
Há em muitos, julgo, um desejo semelhante de não ter de começar, um desejo semelhante de se encontrar, de imediato, do outro lado do discurso, sem ter de ver do lado de quem está de fora aquilo que ele pode ter de singular, de temível, de maléfico mesmo. A este querer tão comum a instituição responde de maneira irónica, porque faz com que os começos sejam solenes, porque os acolhe num rodeio de atenção e silêncio, e lhes impõe, para que se vejam à distância, formas ritualizadas.
O desejo diz: "Eu, eu não queria ser obrigado a entrar nessa ordem incerta do discurso; não queria ter nada que ver com ele naquilo que tem de peremptório e de decisivo; queria que ele estivesse muito próximo de mim como uma transparência calma, profunda, indefinidamente aberta, e que os outros respondessem à minha expectativa, e que as verdades, uma de cada vez, se erguessem; bastaria apenas deixar-me levar, nele e por ele, como um barco à deriva, feliz." E a instituição responde: "Tu não deves ter receio em começar; estamos aqui para te fazer ver que o discurso está na ordem das leis; que sempre vigiámos o seu aparecimento; que lhe concedemos um lugar, que o honra, mas que o desarma; e se ele tem algum poder, é de nós, e de nós apenas, que o recebe."
Mas talvez esta instituição e este desejo não sejam mais do que duas réplicas a uma mesma inquietação: inquietação face àquilo que o discurso é na sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietação face a essa existência transitória destinada sem dúvida a apagar-se, mas segundo uma duração que não nos pertence; inquietação por sentir nessa actividade, quotidiana e banal porém, poderes e perigos que sequer adivinhamos; inquietação por suspeitarmos das lutas, das vitórias, das feridas, das dominações, das servidões que atravessam tantas palavras em cujo uso há muito se reduziram as suas rugosidades.
Mas o que há assim de tão perigoso por as pessoas falarem, qual o perigo dos discursos se multiplicarem indefinidamente? Onde é que está o perigo?
*

É esta a hipótese que eu queria apresentar, esta tarde, para situar o lugar — ou talvez a antecâmara — do trabalho que faço: suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, seleccionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por papel exorcizar-lhe os poderes e os perigos, refrear-lhe o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada, temível materialidade.
É claro que sabemos, numa sociedade como a nossa, da existência de procedimentos de exclusão. O mais evidente, o mais familiar também, é o interdito. Temos consciência de que não temos o direito de dizer o que nos apetece, que não podemos falar de tudo em qualquer circunstância, que quem quer que seja, finalmente, não pode falar do que quer que seja. Tabu do objecto, ritual da circunstância, direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala: jogo de três tipos de interditos que se cruzam, que se reforçam ou que se compensam, formando uma grelha complexa que está sempre a modificar-se. Basta-me referir que, nos dias que correm, as regiões onde a grelha mais se aperta, onde os quadrados negros se multiplicam, são as regiões da sexualidade e as da política: longe de ser um elemento transparente ou neutro no qual a sexualidade se desarma e a política se pacifica, é como se o discurso fosse um dos lugares onde estas regiões exercem, de maneira privilegiada, algumas dos seus mais temíveis poderes. O discurso, aparentemente, pode até nem ser nada de por aí além, mas no entanto, os interditos que o atingem, revelam, cedo, de imediato, o seu vínculo ao desejo e o poder. E com isso não há com que admirarmo-nos: uma vez que o discurso — a psicanálise mostrou-o —, não é simplesmente o que manifesta (ou esconde) o desejo; é também aquilo que é objecto do desejo; e porque — e isso a história desde sempre o ensinou — o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos.
Há na nossa sociedade outro princípio de exclusão: não já um interdito, mas uma partilha e uma rejeição. Penso na oposição da razão e da loucura (folie). Desde os arcanos da Idade Média que o louco é aquele cujo discurso não pode transmitir-se como o dos outros: ou a sua palavra nada vale e não existe, não possuindo nem verdade nem importância, não podendo testemunhar em matéria de justiça, não podendo autentificar um acto ou um contrato, não podendo sequer, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; ou, como reverso de tudo isto, e por oposição a outra palavra qualquer, são-lhe atribuídos estranhos poderes: o de dizer uma verdade oculta, o de anunciar o futuro, o de ver, com toda a credulidade, aquilo que a sagacidade dos outros não consegue atingir. É curioso reparar que na Europa, durante séculos, a palavra do louco, ou não era ouvida, ou então, se o era, era ouvida como uma palavra verdadeira. Ou caía no nada — rejeitada de imediato logo que proferida; ou adivinhava-se nela uma razão crédula ou subtil, uma razão mais razoável do que a razão das pessoas razoáveis. De qualquer modo, excluída ou secretamente investida pela razão, em sentido estrito, ela não existia. Era por intermédio das suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; essas palavras eram o lugar onde se exercia a partilha; mas nunca eram retidas ou escutadas. A nunca um médico ocorrera, antes do final do século XVIII, saber o que era dito (como era dito, por que é que era dito isso que era dito) nessa palavra que, não obstante, marcava a diferença. Todo esse imenso discurso do louco recaía no ruído; e se se lhe dava a palavra era de modo simbólico, no teatro, onde se apresentava desarmado e reconciliado, já que aí representava a verdade mascarada.
Dir-me-ão que hoje tudo isto já acabou ou que está em vias de acabar; que a palavra do louco já não está do outro lado da partilha; que já tem uma existência e uma validez; que, pelo contrário, nos coloca de sobreaviso; que procuramos nela um sentido, o esboço ou as ruínas de uma obra; e que somos capazes de a surpreender, à palavra do louco, naquilo que nós próprios articulamos, nessa minúscula fenda por onde aquilo que dizemos nos escapa. Mas uma tamanha atenção não prova que a antiga partilha não se exerça ainda; basta pensar em toda a armadura de saber por intermédio da qual nós deciframos essas palavras; basta pensar na rede de instituições que permite a qualquer um — médico, psicanalista — escutar essa palavra, e que permite simultaneamente ao paciente trazer, ou desesperadamente reter, as suas próprias palavras; basta pensar em tudo isso para suspeitar que a partilha, longe de se ter apagado, se exerce de outra maneira, através de linhas diferentes, por intermédio de novas instituições e com efeitos que não são já os mesmos. E mesmo quando o próprio papel do médico é apenas o de escutar com atenção uma palavra, por fim, livre, é sempre a partir da manutenção da cesura que se exerce a escuta. Escuta de um discurso que é investido pelo desejo, e que se julga a si mesmo — pela sua maior exaltação ou maior angústia — possuído de terríveis poderes. Se para curar os monstros é necessário o silêncio da razão, basta que ele se mantenha alerta e a partilha permanece.
Talvez seja arriscado considerar a oposição do verdadeiro e do falso como um terceiro sistema de exclusão, a par daqueles de que acabo de falar. Como é que se pode razoavelmente comparar o constrangimento da verdade com as partilhas referidas, partilhas que à partida são arbitrárias, ou que, quando muito, se organizam em torno de contingências históricas; que não são apenas modificáveis, mas estão em perpétuo deslocamento; que são sustentadas por todo um sistema de instituições que as impõem e as reconduzem; que, ao fim e ao cabo, não se exercem sem constrangimento, ou pelo menos sem um pouco de violência.
É claro que, colocando-nos, no interior de um discurso, ao nível de uma proposição, a partilha entre o verdadeiro e o falso não é nem arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas, numa outra escala, se nos pusermos a questão de saber, no interior dos nossos discursos, qual foi, qual é, constantemente, essa vontade de verdade que atravessou tantos séculos da nossa história, ou, na sua forma muito geral, qual o tipo de partilha que rege a nossa vontade de saber, então talvez vejamos desenhar-se qualquer coisa como um sistema de exclusão (sistema histórico, modificável, institucionalmente constrangedor).
Partilha historicamente constituída, por certo. Pois, ainda nos poetas gregos do século VI, o discurso verdadeiro — no sentido forte e valorizado da palavra —, o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, ao qual era necessário submeter-se, porque reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido; era o discurso que dizia a justiça e atribuía a cada um a sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não apenas anunciava o que haveria de passar-se, mas contribuía para a sua realização, obtinha a adesão dos homens e desse modo se entretecia com o destino. Ora, um século mais tarde, a maior das verdades já não estava naquilo que o discurso era ou naquilo que fazia, mas sim naquilo que o discurso dizia: chegou porém o dia em que a verdade se deslocou do acto ritualizado de enunciação, eficaz e justo, para o próprio enunciado: para o seu sentido, a sua forma, o seu objecto, a sua relação à referência. Entre Hesíodo e Platão uma certa partilha se estabeleceu, separando o discurso verdadeiro e o discurso falso; nova partilha, uma vez que daí em diante o discurso verdadeiro deixa de ser o discurso valioso e desejável, uma vez que o discurso verdadeiro já não é o discurso ligado ao exercício do poder. O sofista é encurralado.
Sem dúvida que esta partilha histórica deu à nossa vontade de saber a sua forma geral. Não deixou porém de deslocar-se: as grandes mutações científicas podem talvez ler-se, por vezes, enquanto consequências de uma descoberta, mas podem ler-se também como aparecimentos de novas formas da vontade de verdade. Há sem dúvida uma vontade de verdade no século XIX, que não coincide com a vontade de saber que caracteriza a cultura clássica, nem pelas formas que põe em jogo, nem pelos domínios de objectos aos quais se dirige, nem pelas técnicas em que se apoia. Voltemos um pouco atrás: na viragem do século XVI para o século XVII (e na Inglaterra sobretudo) apareceu uma vontade de saber que, antecipadamente em relação aos seus conteúdos actuais, concebia planos de objectos possíveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis; uma vontade de saber que impunha ao sujeito que conhece (e de algum modo antes de toda a experiência) uma certa posição, um certo olhar e uma certa função (ver em vez de ler, verificar em vez de comentar); uma vontade de saber que prescrevia (e de um modo mais geral do que qualquer instrumento determinado) o nível técnico onde os conhecimentos deveriam investir-se para serem verificáveis e úteis. Tudo se passa como se a partir da grande partilha platónica a vontade de verdade tivesse a sua própria história, que não já a das verdades que constrangem: história dos planos de objectos a conhecer, história das funções e posições do sujeito que conhece, história dos investimentos materiais, técnicos, instrumentais do conhecimento.
Ora esta vontade de verdade, tal como os outros sistemas de exclusão, apoia-se numa base institucional: ela é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas como a pedagogia, claro, o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas é também reconduzida, e de um modo mais profundo sem dúvida, pela maneira como o saber é disposto numa sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e, de certa forma, atribuído. Evoquemos aqui, e a título simbólico somente, o antigo princípio grego: a aritmética é tratada nas sociedades democráticas, porque ensina as relações de igualdade, mas a geometria apenas deve ser ensinada nas oligarquias, dado que demonstra as proporções na desigualdade.
E creio que esta vontade de verdade, por fim, apoiando-se numa base e numa distribuição institucionais, tende a exercer sobre os outros discursos — continuo a falar da nossa sociedade — uma espécie de pressão e um certo poder de constrangimento. Estou a pensar na maneira como a literatura ocidental teve de apoiar-se, há séculos a esta parte, no natural, no verosímil, na sinceridade, e também na ciência — numa palavra, no discurso verdadeiro. E estou a pensar, igualmente, na maneira como as práticas económicas, codificadas como preceitos ou receitas, eventualmente até como moral, procuraram, desde o século XVI, fundamentar-se, racionalizar-se e justificar-se numa teoria das riquezas e da produção. Penso ainda na maneira como um todo tão prescritivo quanto o sistema penal foi encontrar os seus alicerces ou a sua justificação, em primeiro lugar, claro, numa teoria do direito, e depois, a partir do século XIX, num saber sociológico, psicológico, médico, psiquiátrico: como se na nossa sociedade a própria palavra da lei só pudesse ter autoridade por intermédio de um discurso de verdade.
Dos três grandes sistemas de exclusão que incidem sobre o discurso, a palavra interdita, a partilha da loucura e a vontade de verdade, foi no terceiro que eu mais me demorei. Pois é na sua direcção que os primeiros se têm constantemente encaminhado, há séculos a esta parte; porque, cada vez mais, ele visa tomá-los a seu cargo, para ao assim os modificar e fundar; porque, se os dois primeiros se tornam cada vez mais frágeis, mais incertos, na medida em que agora são atravessados pela vontade de verdade, esta, pelo contrário, cada vez mais se reforça, tornando-se mais profunda e mais incontornável.
E no entanto, é sem dúvida dela que menos se fala. Como se a vontade de verdade e as suas peripécias fossem mascaradas pela própria verdade na sua explicação necessária. E a razão disso talvez seja esta: se, com efeito, o discurso verdadeiro já não é, desde os Gregos, aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, o que é que, no entanto, está em jogo na vontade de verdade, na vontade de o dizer, de dizer o discurso verdadeiro — o que é que está em jogo senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, separado do desejo e liberto do poder pela necessidade da sua forma, não pode reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de verdade que desde há muito se nos impôs é tal, que a própria verdade — que a vontade de verdade quer — mascara a vontade de verdade.
Por tudo isto, os nossos olhos só vêem uma verdade que é riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E, ao invés, não vemos a vontade de verdade enquanto prodigiosa maquinaria destinada a excluir. Todos aqueles que, de uma ponta a outra da nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade, interrogando-a e voltando-a contra a verdade, precisamente onde a própria verdade procura justificar o interdito e definir a loucura, todos eles, de Nietzsche a Artaud e a Bataille, devem servir-nos hoje de sinais, soberbos sem dúvida, para o nosso trabalho.
*

Evidentemente que há outros procedimentos de controlo e de delimitação do discurso. Aqueles de que falei até agora exercem-se, de algum modo, a partir do exterior; funcionam como sistemas de exclusão; dizem respeito sem dúvida à parte do discurso em que estão implicados o poder e o desejo.
Pode-se, julgo, isolar outro grupo. Procedimentos internos, dado que são os próprios discursos a exercer o seu controlo; procedimentos que funcionam sobretudo enquanto princípios de classificação, de ordenamento, de distribuição, como se se tratasse, agora, de dominar uma outra dimensão do discurso: a do acontecimento e a do acaso.
Na frente, o comentário. Suponho, mas sem estar muito certo disso, que não há nenhuma sociedade onde não existam narrativas maiores, que se contam, se repetem, e que se vão mudando; fórmulas, textos, colecções ritualizadas de discursos, que se recitam em circunstânc ias determinadas; coisas ditas uma vez e que são preservadas, porque suspeitamos que nelas haja algo como um segredo ou uma riqueza. Em suma, pode suspeitar-se que há nas sociedades, de um modo muito regular, uma espécie de desnível entre os discursos: os discursos que "se dizem" ao correr dos dias e das relações, discursos que se esquecem no próprio acto que lhes deu origem; e os discursos que estão na origem de um certo número de novos actos de fala, actos que os retomam, os transformam ou falam deles, numa palavra, os discursos que, indefinidamente e para além da sua formulação, são ditos, ficam ditos, e estão ainda por dizer. Sabemos da sua existência no nosso sistema de cultura: são os textos religiosos ou jurídicos, são também esses textos curiosos, quando pensamos no seu estatuto, a que se chama "literários"; e numa certa medida também, os textos científicos.
Está bem que este desnível não é estável, não é constante, não é absoluto. Não há, por um lado, a categoria dos discursos fundamentais ou criadores, dada de uma vez para sempre; e não há, por outro lado, a massa dos outros que repetem, glosam e comentam. Há muitos textos maiores que se dispersam e desaparecem, e há comentários que por vezes vêm ocupar o lugar primordial. Mas se é verdade que os seus pontos de aplicação podem mudar, a função permanece; e o princípio de um desnível é incessantemente accionado. O apagamento radical deste desnível não pode ser senão jogo, utopia ou angústia. Jogo do comentário, à maneira de Borges, comentário que consiste num reaparecimento palavra a palavra (mas desta vez solene e esperada) daquilo que comenta; e ainda o jogo de uma crítica que falaria até ao infinito de uma obra inexistente. Sonho lírico de um discurso que renasce, absolutamente novo e inocente, em cada um dos seus pontos, e que reaparece, a todo o momento, com toda a frescura, a partir das coisas, dos sentimentos ou dos pensamentos. Angústia como a de um doente de Janet, para o qual o menor enunciado era como se fosse uma "palavra do Evangelho", refúgio de inesgotáveis tesouros de sentido e que merecia ser indefinidamente retomado, recomeçado, comentado: "Quando penso, dizia ele ao ler ou ao ouvir, quando penso nessa frase, que foge para a eternidade, e que eu talvez não tenha ainda compreendido por completo."
Mas como não ver que se trata também aí de anular um só dos termos da relação e não, de modo algum, da supressão da própria relação? Relação que se modifica permanentemente pelo tempo fora; relação que adquire, numa dada época, formas múltiplas e divergentes; a exegese jurídica é muito diferente (e isto desde há muito tempo) do comentário religioso; basta uma única obra literária para dar lugar, simultaneamente, a tipos de discurso muito diferentes: a Odisseia, enquanto texto primeiro, é repetido, na mesma época, na tradução de Bérard, em muitas explicações de textos, no Ulisses de Joyce.
De momento, naquilo a que chamamos globalmente um comentário, quero limitar-me a indicar que o desnível entre o texto primeiro e o texto segundo desempenha dois papéis solidários. Por um lado, permite construir (e indefinidamente) novos discursos : o pendor do discurso primeiro, a sua permanência, o seu estatuto de discurso sempre reactualizável, o sentido múltiplo ou escondido de que ele passa por ser o detentor, a reserva ou a riqueza essencial que lhe são atribuídas, tudo isso funda uma possibilidade aberta de falar. Mas por outro lado, quaisquer que sejam as técnicas usadas, o comentário não tem outro papel senão o de dizer finalmente aquilo que estava silenciosamente articulado no texto primeiro. O comentário deve, num paradoxo que ele desloca sempre mas de que nunca se livra, dizer pela primeira vez aquilo que já tinha sido dito entretanto, e repetir incansavelmente aquilo que, porém, nunca tinha sido dito. O emaranhar indefinido dos comentários é trabalhado do interior pelo sonho de uma repetição mascarada : no seu horizonte, não há talvez mais nada senão aquilo que estava no ponto de partida, a simples recitação. O comentário, ao dar conta das circunstâncias do discurso, exorciza o acaso do discurso : em relação ao texto, ele permite dizer outra coisa, mas com a condição de que seja esse mesmo texto a ser dito e de certa forma realizado. Pelo princípio do comentário, a multiplicidade aberta, os imprevistos, são transferidos daquilo que corria o risco de ser dito para o número, a forma, a máscara, a circunstância da repetição. O novo não está naquilo que é dito, mas no acontecimento do seu retorno.
Julgo que há um outro princípio de rarefacção do discurso. Que é até certo ponto complementar do primeiro. Trata-se do autor. Entendido o autor, claro, não como o indivíduo que fala, o indivíduo que pronunciou ou escreveu um texto, mas como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem das suas significações, como lastro da sua coerência. Este princípio não funciona em qualquer lugar, nem de maneira constante : existem, à nossa volta, muitos discursos que circulam sem que o seu sentido ou a sua eficácia estejam em poder de um autor, a que seriam atribuídos : palavras do dia a dia, que se apagam de imediato ; decretos ou contratos que têm necessidade de signatários, mas não de autor, receitas técnicas que se transmitem no anonimato. Mas nos domínios em que a atribuição a um autor é usual — literatura, filosofia, ciência — vemos que essa atribuição não desempenha sempre o mesmo papel ; na ordem do discurso científico, a atribuição a um autor era, na Idade Média, indispensável, pois era um indicador de verdade. Considerava-se que o valor científico de uma proposição estava em poder do seu próprio autor. Desde o século XVIII que esta função se tem vindo a atenuar no discurso científico : já não funciona senão para dar um nome a um teorema, a um efeito, a um exemplo, a um síndroma. Em contrapartida, na ordem do discurso literário, e a partir da mesma época, a função do autor tem vindo a reforçar-se : a todas essas narrativas, a todos esses poemas, a todos esses dramas ou comédias que circulavam na Idade Média num anonimato mais ou menos relativo, a todos eles é-lhes agora perguntado (e exige-se-lhes que o digam) donde vêm, quem os escreveu ; pretende-se que o autor dê conta da unidade do texto que se coloca sob o seu nome ; pede-se-lhe que revele, ou que pelo menos traga no seu íntimo, o sentido escondido que os atravessa ; pede-se-lhe que os articule, com a sua vida pessoal e com as suas experiências vividas, com a história real que os viu nascer. O autor é o que dá à inquietante linguagem da ficção, as suas unidades, os seus nós de coerência, a sua inserção no real.
Sei o que me vão dizer: "Mas você fala do autor, que a crítica reinventa quando já é tarde, quando a morte chegou e já não resta nada senão uma massa emaranhada de coisas ininteligíveis ; é necessário pôr um pouco de ordem em tudo isso, imaginar um projecto, uma coerência, uma temática que é procurada na consciência ou na vida de um autor que, com efeito, é talvez um tanto fictício. Mas isso não impede que ele não tenha existido, o autor real, esse homem que irrompe pelo meio de todas as palavras usadas, que trazem em si o seu génio ou a sua desordem."
Seria absurdo, claro, negar a existência do indivíduo que escreve e que inventa. Mas eu penso — e isto pelo menos a partir de uma certa época — que o indivíduo que começa a escrever um texto, no horizonte do qual gira uma obra possível, retoma à sua conta a função do autor : o que escreve e o que não escreve, o que desenha, mesmo a título de rascunho provisório, como esboço da obra, aquilo que ele deixa e que cai como as palavras do dia-a-dia, todo esse jogo de diferenças é prescrito pela função autor, tal como ele a recebe da sua época, ou tal como, por sua vez, a modifica. Pois ele pode muito bem perturbar a imagem tradicional que se tem do autor; é a partir de uma nova posição do autor que ele recortará, em tudo aquilo que ele teria podido dizer, em tudo aquilo que ele diz todos os dias, a todo o instante, o perfil ainda oscilante da sua obra.
O comentário limitava o acaso do discurso com o jogo de uma identidade que tinha a forma da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso com o jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu.
Será necessário também reconhecer naquilo a que se chama as "disciplinas" — não as ciências — um outro princípio de limitação. Princípio esse também relativo e móvel. Princípio que permite construir, mas com base num jogo delimitado.
A organização das disciplinas opõe-se tanto ao princípio do comentário quanto ao do autor. Ao do autor, uma vez que uma disciplina se define por um domínio de objectos, um conjunto de métodos, um corpo de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos : tudo isto constitui uma espécie de sistema anónimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que o seu sentido ou a sua validade estejam ligados ao seu inventor. Mas o princípio da disciplina opõe-se também ao do comentário : numa disciplina, diferentemente do comentário, não está suposto à partida que é um sentido o que deve ser redescoberto, nem está suposto que é uma identidade que deve ser repetida ; está suposto antes aquilo que é necessário para a construção de novos enunciados. Para que haja disciplina, é preciso, por conseguinte, que haja a possibilidade de formular, e de formular indefinidamente, novas proposições.
Mas há mais ; e há mais, sem dúvida, para que haja menos : uma disciplina não é a soma de tudo aquilo que pode ser dito de verdadeiro a propósito de qualquer coisa ; nem mesmo é o conjunto de tudo aquilo que, a propósito de um mesmo dado, pode, pelo princípio de coerência ou sistematização, ser aceite. A medicina não é constituída pela totalidade do que se pode dizer de verdadeiro sobre a doença ; a botânica não pode ser definida pela soma de todas as verdades que dizem respeito às plantas. Há duas razões para isso : em primeiro lugar, a botânica ou a medicina, como qualquer outra disciplina, são feitas tanto de erros quanto de verdades, erros que não são resíduos ou corpos estranhos, mas que têm funções positivas, uma eficácia histórica, um papel muitas vezes indistinto do das verdades. Mas por outro lado, para que uma proposição pertença à botânica ou à patologia, é preciso que ela responda a condições que em certo sentido são mais estritas e mais complexas do que a pura e simples verdade: em todo o caso, a outras condições. A proposição deve dirigir-se a um plano de objectos determinado : a partir do final do século XVII, por exemplo, para que uma proposição fosse "botânica" era necessário que dissesse respeito à estrutura visível da planta, ao sistema das suas semelhanças próximas e longínquas ou à mecânica dos seus fluidos (e já não podia conservar, como era ainda o caso no século XVI, os seus valores simbólicos, ou o conjunto das virtudes ou propriedades que lhe eram reconhecidos na Antiguidade). Mas, não pertencendo a uma disciplina, uma proposição deve utilizar instrumentos conceptuais ou técnicas de um tipo definido ; a partir do século XIX, uma proposição deixava de ser uma proposição de medicina, ficava "fora da medicina" e ganhava um valor de fantasma individual ou de fantasia popular, se empregasse noções ao mesmo tempo metafóricas, qualitativas e substanciais (como as de obstrução, líquidos aquecidos ou sólidos ressequidos) ; ela podia, ela devia apelar, pelo contrário, a noções igualmente metafóricas, mas construídas com base noutro modelo, funcional e fisiológico este (era a irritação, a inflamação ou a degenerescência dos tecidos). Há mais ainda : para pertencer a uma disciplina, uma proposição deve poder inscrever-se num certo tipo de horizonte teórico : basta lembrar que a procura da língua primitiva, que foi um tema plenamente aceite até ao século XVIII, era suficiente, na segunda metade do século XIX, para fazer sucumbir qualquer discurso, não digo no erro, mas na quimera e no devaneio, na pura e simples monstruosidade linguística.
No interior dos seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas ; mas repele para o outro lado das suas margens toda uma teratologia do saber. O exterior de uma ciência está mais e menos povoado do que julgamos : certamente que há a experiência imediata, os temas imaginários que trazem e reconduzem incessantemente crenças sem memória ; mas talvez não haja erros em sentido estrito, porque o erro não pode surgir e ser avaliado senão no interior de uma prática definida ; em contrapartida, há monstros que circulam e cuja forma muda com a história do saber. Numa palavra, uma proposição tem de passar por complexas e pesadas exigências para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de se poder dizê-la verdadeira ou falsa, ela deve estar, como diria Canguilhem, "no verdadeiro".
Perguntámo-nos muitas vezes como é que os botânicos e os biólogos do século XIX não puderam ver que era verdadeiro o que Mendel dizia. Mas Mendel falava de objectos, usava métodos, colocava-se num horizonte teórico que eram estranhos à biologia da sua época. Sem dúvida que Naudin, antes dele, já tinha avançado a tese segundo a qual os traços hereditários eram discretos ; porém, por novo ou estranho que fosse este princípio, ele podia fazer parte — pelo menos a título de enigma — do discurso biológico. Mendel, por seu lado, constitui o traço hereditário enquanto objecto biológico absolutamente novo, graças a uma filtragem que nunca tinha sido utilizada até aí : ele isola o traço hereditário da espécie, isola-o do sexo que o transmite ; e o domínio em que o observa é a série indefinidamente aberta das gerações onde ele aparece e desaparece segundo regularidades estatísticas. Novo objecto, que convoca novos instrumentos conceituais e novos fundamentos teóricos. Mendel dizia a verdade, mas não estava "no verdadeiro" do discurso biológico da sua época : não era com base nessas regras que se formavam os objectos e os conceitos biológicos ; para que Mendel entrasse no verdadeiro e para que as suas proposições surgissem (em boa parte) exactas foi necessário toda uma mudança de escala, o desenvolvimento de todo um novo plano de objectos em biologia. Mendel era um monstro verdadeiro, o que fazia com que a ciência não pudesse falar dele ; ao passo que Schleiden, por exemplo, cerca de trinta anos antes, ao negar a sexualidade vegetal em pleno século XIX, fazia-o segundo as regras do discurso biológico e com isso formulava apenas um erro disciplinado. Pode sempre acontecer que se diga o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem ; mas não se está no verdadeiro sem que se obedeça às regras de uma "polícia" discursiva que temos de reactivar em cada um dos seus discursos.
A disciplina é um princípio de controlo da produção do discurso. Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reactualização permanente das regras.
Tem-se o hábito de ver na fecundidade de um autor, na multiplicidade dos comentários, no desenvolvimento de uma disciplina, recursos infinitos para a criação dos discursos. Talvez, mas não deixam de ser princípios de constrangimento ; e é provável que não se possa reconhecer o seu papel positivo e multiplicador se não tomarmos em consideração a sua função restritiva e constrangedora.
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Existe, creio, um terceiro grupo de procedimentos que permitem o controlo dos discursos. Não se trata desta vez de dominar os poderes que eles detêm, nem de exorcizar os acasos do seu aparecimento ; trata-se de determinar as condições do seu emprego, de impor aos indivíduos que os proferem um certo número de regras e de não permitir, desse modo, que toda a gente tenha acesso a eles. Rarefacção, agora, dos sujeitos falantes ; ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer certas exigências, ou se não estiver, à partida, qualificado para o fazer. Mais precisamente : as regiões do discurso não estão todas igualmente abertas e penetráveis ; algumas estão muito bem defendidas (são diferenciadas e são diferenciantes), enquanto outras parecem abertas a todos os ventos e parecem estar colocadas à disposição de cada sujeito falante sem restrições prévias.
Gostaria de lembrar uma anedota sobre este tema, tão bela que receamos que ela seja verdadeira. Ela congrega numa única figura todos os constrangimentos do discurso : os constrangimentos que limitam os seus poderes, os que refreiam os seus aparecimentos aleatórios, os que seleccionam os sujeitos falantes. No início do século XVII, o Shogun tinha ouvido dizer que a superioridade dos europeus — na navegação, no comércio, na política, na arte militar — era devida ao conhecimento das matemáticas. Quis apoderar-se desse saber tão precioso. Como lhe tinham falado de um marinheiro inglês que possuía o segredo desses discursos maravilhosos, fê-lo vir ao seu palácio e aí o reteve. A sós com ele, recebeu lições. Aprendeu as matemáticas. Guardou para si próprio o poder destas e viveu até muito velho. Só houve matemáticos japoneses no século XIX. Mas a anedota não fica por aqui : tem a sua vertente europeia. Com efeito, a história pretende que o marinheiro inglês, Will Adams, era um autodidacta : um carpinteiro que, por ter trabalhado num estaleiro naval, tinha aprendido geometria. Será necessário ver nesta narrativa a expressão de um dos grandes mitos da cultura europeia? Ao saber monopolizado e secreto da tirania oriental, a Europa oporia a comunicação universal do conhecimento, o intercâmbio indeterminado e livre dos discursos.
É claro que este tema não resiste ao exame. O intercâmbio e a comunicação são figuras positivas que funcionam no interior de sistemas complexos de restrição ; e sem dúvida que não podem funcionar independentemente destes. A forma mais superficial e mais visível destes sistemas de restrição é constituída por aquilo que se pode agrupar sob o nome de ritual ; o ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam (e que, no jogo do diálogo, na interrogação, na recitação, devem ocupar determinada posição e formular determinado tipo de enunciados) ; define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de sinais que devem acompanhar o discurso ; o ritual fixa, por fim, a eficácia, suposta ou imposta, das palavras, o seu efeito sobre aqueles a quem elas se dirigem, os limites do seu valor constrangedor. Os discursos religiosos, jurídicos, terapêuticos, e em parte também os políticos, não são dissociáveis desse exercício de um ritual que determina para os sujeitos falantes, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis convenientes.
Com um funcionamento que é em parte diferente, as "sociedades de discurso" têm por função conservar ou produzir discursos, mas isso para os fazer circular num espaço fechado, e para os distribuir segundo regras estritas, sem que os detentores do discurso sejam lesados com essa distribuição. Um dos modelos arcaicos disto é-nos dado pelos grupos de rapsodos que detinham o conhecimento dos poemas a recitar, ou eventualmente a fazer variar e transformar ; mas ainda que o fim deste conhecimento fosse uma recitação que era afinal de contas ritual, ele estava — pelos exercícios de memória, muitas vezes complexos, que implicava — protegido, defendido e conservado num grupo determinado ; a aprendizagem dava acesso, ao mesmo tempo, a um grupo e a um segredo que a recitação manifestava, mas não divulgava ; não se trocavam os papéis entre a fala e a escuta.
Claro que já não existem semelhantes "sociedades de discurso", com este jogo ambíguo do segredo e da divulgação. Mas não nos enganemos ; mesmo na ordem do discurso verdadeiro, mesmo na ordem do discurso publicado e liberto de todo o ritual, exercem-se ainda formas de apropriação do segredo e de não-intermutabilidade. Talvez o acto de escrever, tal como está hoje institucionalizado no livro, no sistema da edição e na personagem do escritor, seja um acto que se dá numa "sociedade de discurso", difusa talvez, mas seguramente constrangedora. A diferença do escritor, que é por si próprio oposta permanentemente à actividade de qualquer outro sujeito falante ou escritor, o carácter intransitivo que ele atribui ao seu discurso, a singularidade fundamental que ele, há muito tempo já, confere à "escrita", a dissimetria afirmada entre a "criação" e qualquer outra utilização do sistema linguístico, tudo isto manifesta, na sua formulação, (e tende de resto a reconduzir no jogo das práticas) a existência de uma certa "sociedade de discurso". Mas existem muitas outras, que funcionam de outro modo, segundo um outro regime de exclusivos e de divulgação : pensemos no segredo técnico ou científico, pensemos nas formas de difusão e de circulação do discurso médico ; pensemos naqueles que se apropriaram do discurso económico e político.
O que constitui as doutrinas (religiosas, políticas, filosóficas) é, à primeira vista, o inverso de uma "sociedade de discurso" : nesta, o número dos indivíduos falantes, mesmo quando não estava fixado, tendia a ser limitado ; e era entre eles que o discurso podia circular e ser transmitido. A doutrina, pelo contrário, tende a difundir-se ; e é pelo pôr em comum de um único conjunto de discursos, que os indivíduos, tão numerosos quanto o quisermos imaginar, definem a sua pertença recíproca. Aparentemente, a única condição requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de uma certa regra — mais ou menos flexível — de conformidade com os discursos validados ; se as doutrinas fossem apenas isto, elas não seriam diferentes das disciplinas científicas, e o controlo discursivo diria respeito unicamente à forma ou ao conteúdo do enunciado, não ao sujeito falante. Ora, a pertença doutrinal põe em causa ao mesmo tempo o enunciado e o sujeito falante, e um por intermédio do outro. Põe em causa o sujeito falante por intermédio e a partir do enunciado, como o provam os procedimentos de exclusão e os mecanismos de rejeição que intervêm quando um sujeito falante formulou um ou vários enunciados inassimiláveis ; a heresia e a ortodoxia não provêm de uma fanática exageração dos mecanismos doutrinais; heresia e ortodoxia pertencem-lhes fundamentalmente. Mas, inversamente, a doutrina põe também em causa os enunciados a partir dos sujeitos falantes, na medida em que ele vale sempre como sinal, manifestação e instrumento de uma pertença prévia — pertença de classe, de estatuto social ou de raça, de nacionalidade ou de interesse, de luta, de revolta, de resistência ou de aceitação. A doutrina liga os indivíduos a certos tipos de enunciação e interdita-lhes, por conseguinte, todos os outros ; mas, em reciprocidade, serve-se de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si, e desse modo os diferenciar de todos os outros. Ela efectua uma dupla sujeição : dos sujeitos falantes ao discurso, e dos discursos ao grupo, pelo menos virtual, dos indivíduos falantes.
Finalmente, numa escala muito maior, podem reconhecer-se grandes clivagens naquilo a que se poderia chamar a apropriação social dos discursos. A educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças ao qual todo o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso ; sabemos no entanto que, na sua distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas sociais. Todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes trazem consigo.
Eu sei perfeitamente que a separação que tenho vindo a fazer entre rituais da fala, sociedades de discurso, grupos doutrinários e apropriações sociais, é demasiado abstracta. Na maior parte das vezes estão ligados uns aos outros e são como grandes edifícios que asseguram a distribuição dos sujeitos falantes nos diferentes tipos de discurso e asseguram a apropriação dos discursos a certas categorias de sujeitos. Numa palavra, são os grandes procedimentos de sujeição do discurso. O que é, no fim de contas, um sistema de ensino senão uma ritualização da fala, senão uma qualificação e uma fixação dos papéis dos sujeitos falantes ; senão a constituição de um grupo doutrinal, por difuso que seja ; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com os seus poderes e os seus saberes? O que é a "escrita" (a dos "escritores") senão um sistema de sujeição semelhante, que assume talvez formas um pouco diferentes, mas em que as grandes decomposições são análogas? Será que o sistema jurídico, o sistema institucional da medicina, também eles, pelo menos em alguns dos seus aspectos, não são sistemas semelhantes de sujeição do discurso?
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Pergunto-me se um certo número de temas da filosofia não vieram responder a estes jogos de limitação e exclusão, e, talvez também, reforçá-los.
Vieram responder-lhes, primeiro, ao proporem uma verdade ideal enquanto lei do discurso e uma racionalidade imanente enquanto princípio do seu encadeamento, e também ao reconduzirem uma ética do conhecimento que só promete a verdade ao desejo da própria verdade e ao poder de a pensar.
E vieram reforçá-los por uma denegação que incide, desta vez, sobre a realidade específica do discurso em geral.
Depois de os jogos e o comércio dos sofistas terem sido excluídos, depois de, com maior ou menor segurança, se terem anulado os seus paradoxos, parece que o pensamento ocidental esteve sempre de guarda para que o discurso ocupasse o mais pequeno espaço possível entre o pensamento e a palavra; esteve de guarda para que esse discorrer entre pensar e falar surgisse apenas como um certo legado ; um pensamento que estaria revestido com os seus signos e que se tornaria visível pelas palavras, ou seriam as próprias estruturas da língua em acção, inversamente, que produziriam um efeito de sentido.
Esta elisão da realidade do discurso no pensamento filosófico, muito antiga, assumiu muitas formas no decurso da história. Voltámos a encontrá-la recentemente em vários temas que nos são familiares.
É possível que o tema do sujeito fundador permita elidir a realidade do discurso. O sujeito fundador, com efeito, está encarregue de animar directamente com as suas pretensões as formas vazias da língua; é ele que, ao atravessar a espessura ou a inércia das coisas vazias, capta, na intuição, o sentido que se encontra aí depositado ; é ele igualmente que, para além do tempo, funda horizontes de significação que a história em seguida só terá de explicitar, horizontes onde as proposições, as ciências, as unidades dedutivas encontrarão no fim de contas o seu fundamento. Na sua relação com o sentido, o sujeito fundador dispõe de sinais, de marcas, de vestígios, de letras. Mas para os manifestar não tem necessidade de passar pela instância singular do discurso.
O tema que combina com este, o tema da experiência originária, desempenha um papel análogo. Supõe que, ainda antes da experiência se ter assenhoreado de si mesma na forma de um cogito, haveriam significações prévias, no rés da experiência, já ditas, de certa forma, que percorreriam o mundo, o disporiam à nossa volta e o abririam desde logo a uma espécie de primitivo reconhecimento. A possibilidade de falar do mundo, de falar dentro dele, de o designar e de o nomear, de o julgar e de finalmente o conhecer na forma da verdade, tudo isso teria o seu fundamento, para nós, numa cumplicidade primeira com ele. Se o discurso, na verdade, existe, então, na sua legitimidade, o que é que pode ele ser senão uma discreta leitura? As coisas murmuram já um sentido que a nossa linguagem apenas tem de erguer ; e a linguagem, desde o seu projecto mais rudimentar, fala-nos de um ser do qual ela seria a nervura.
Creio que o tema da mediação universal é também uma maneira de elidir a realidade do discurso. E isto apesar da aparência. Pois parece que, à primeira vista, encontrando-se por toda a parte o movimento de um logos que eleva as singularidades até ao conceito e que permite à consciência imediata revelar, finalmente, toda a racionalidade do mundo, é o próprio discurso que colocamos no centro da especulação. Mas este logos, a bem dizer, é feito de um discurso já dado, ou, em vez disso, são as próprias coisas e os acontecimentos que se tornam discurso, de modo insensível, ao revelarem o segredo da sua própria essência. O discurso nada mais é do que o reflexo de uma verdade que está sempre a nascer diante dos seus olhos; e por fim, quando tudo pode tomar a forma do discurso, quando tudo se pode dizer e o discurso se pode dizer a propósito de tudo, é porque todas as coisas que manifestaram e ofereceram o seu sentido podem reentrar na interioridade silenciosa da consciência de si.
Por conseguinte, quer seja numa filosofia do sujeito fundador, numa filosofia da experiência originária ou numa filosofia da mediação universal, o discurso não passa de um jogo, jogo de escrita no primeiro caso, de leitura no segundo, de intercâmbio no terceiro caso — e este intercâmbio, esta leitura e esta escrita somente põem em acção os signos. Na sua realidade, ao ser colocado na ordem do significante, o discurso anula-se.
Aparentemente, que civilização respeitou mais o discurso do que a nossa? Onde é que mais e melhor se honrou o discurso? Onde é que, ao que parece, mais radicalmente se libertou o discurso dos seus constrangimentos e se universalizou? Ora, parece-me que sob esta aparente veneração do discurso, sob esta aparente logofilia, esconde-se uma espécie de temor. Tudo se passa como se os interditos, as barragens, as entradas e os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira a que, ao menos em parte, a grande proliferação do discurso seja dominada, de maneira a que a sua riqueza seja alijada da sua parte mais perigosa e que a sua desordem seja organizada segundo figuras que esquivam aquilo que é mais incontrolável ; tudo se passa como se se tivesse mesmo querido apagar as marcas da sua irrupção nos jogos do pensamento e da língua. Há sem dúvida na nossa sociedade, e imagino que em todas as outras, com base em perfis e decomposições diferentes, uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo por esses acontecimentos, por essa massa de coisas ditas, pelo surgimento de todos esses enunciados, por tudo o que neles pode haver de violento, de descontínuo, de batalhador, de desordem também e de perigoso, por esse burburinho incessante e desordenado do discurso.
E se quisermos — não digo eliminar esse temor — mas analisar as suas condições, o seu jogo e os seus efeitos, é preciso, creio, resolvermo-nos a tomar três decisões, em relação às quais o nosso pensamento, hoje, resiste um pouco, e que correspondem aos três grupos de funções que acabo de mencionar : interrogar a nossa vontade de verdade ; restituir ao discurso o seu carácter de acontecimento ; finalmente, abandonar a soberania do significante.
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São estas as tarefas, ou antes, alguns temas que orientam o trabalho que gostaria de fazer aqui nos próximos anos. Podemos de imediato assinalar certas exigências de método que eles convocam.
Em primeiro lugar, um princípio de inversão: onde julgamos reconhecer, segundo a tradição, a fonte dos discursos, onde julgamos reconhecer o princípio da sua fusão e da sua continuidade, nessas figuras que parecem desempenhar um papel positivo, como a do autor, a da disciplina, a da vontade de verdade, é necessário reconhecer nelas, em vez disso, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefacção do discurso.
Mas, uma vez desvendados os princípios de rarefacção, uma vez que os deixámos de considerar como instância fundamental e criadora, o que é que se descobre debaixo deles? Será necessário admitir a plenitude virtual de um mundo de discursos ininterruptos? É aqui que é necessária a intervenção de outros princípios de método.
Um princípio de descontinuidade: que haja sistemas de rarefacção não quer dizer que aquém deles, ou para-além deles, reine um grande discurso ilimitado, contínuo e silencioso, discurso que, por via desses sistemas, se encontraria reprimido ou recalcado, e que teríamos de reerguer, restituindo-lhe a palavra. Não é necessário imaginar um não dito ou um impensado que percorre e entrelaça o mundo com todas as suas formas e todos os seus acontecimentos, o qual teríamos de articular, ou, finalmente, pensar. Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas que se cruzam, que às vezes se justapõem, mas que também se ignoram ou se excluem.
Um princípio de especificidade: não dissolver o discurso num jogo de significações prévias ; não imaginar que o mundo nos mostra uma face legível que apenas teríamos de decifrar ; ele não é cúmplice do nosso conhecimento ; não há uma providência pré-discursiva que o volte para nós. É necessário conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, em todo o caso como uma prática que lhes impomos ; e é nessa prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio da sua regularidade.
Quarta regra, a da exterioridade: não ir do discurso até ao seu núcleo interior e escondido, até ao centro de um pensamento ou de uma significação que nele se manifestasse ; mas, a partir do próprio discurso, do seu aparecimento e da sua regularidade, ir até às suas condições externas de possibilidade, até ao que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e que lhes fixa os limites.
Quatro noções devem servir, por conseguinte, de princípio regulador à análise: a de acontecimento, a de série, a de regularidade, a de condição de possibilidade. Vemos que estas noções estão em oposição, termo a termo, a outras: o acontecimento à criação, a série à unidade, a regularidade à originalidade, e a condição de possibilidade à significação. Estas quatro últimas noções (significação, originalidade, unidade, criação) têm dominado, de uma maneira geral, a história tradicional das ideias, na qual, de comum acordo, se procura o ponto da criação, a unidade de uma obra, de uma época ou de um tema, a marca da originalidade individual e o tesouro indeterminado das significações ocultas.
Acrescentarei apenas duas observações. Uma diz respeito à história. Credita-se frequentemente a história contemporânea pelo facto de ter retirado os privilégios outrora concedidos ao acontecimento singular e de ter feito aparecer as estruturas da longa duração. Certamente. Mas mesmo assim não estou certo de que o trabalho dos historiadores tenha sido feito precisamente nessa direcção. Ou antes, não penso que haja uma razão inversa entre a notação do acontecimento e a análise da longa duração. Parece que, pelo contrário, ao apertar até ao extremo o caroço do acontecimento, ao conduzir o poder de resolução da análise histórica até aos preços dos comestíveis, até aos actos notariais, até aos registos de paróquia, até aos registos portuários analisados ano a ano, semana a semana, foi assim que se viram despontar, para-além das batalhas, dos decretos, das dinastias ou das assembleias, os fenómenos espessos de alcance secular ou plurissecular. A história, no modo como é praticada hoje em dia, não se afasta dos acontecimentos, pelo contrário, ela alarga-lhes incessantemente o campo ; descobre incessantemente novas camadas, mais superficiais ou mais profundas ; isola incessantemente conjuntos novos, em que os acontecimentos são por vezes numerosos, densos e substituíveis, e por vezes raros e decisivos : desloca-se das variações quase quotidianas dos preços até às inflações seculares. Mas o importante é que a história não considere um acontecimento sem definir a série de que ele faz parte, sem especificar o modo de análise de que esta série depende, sem procurar conhecer a regularidade dos fenómenos e os limites de probabilidade da sua emergência, sem se interrogar sobre as variações, as inflexões e o comportamento da curva, sem determinar a condições de que elas dependem. É claro que há já muito tempo que a história não procura compreender os acontecimentos pelo jogo das causas e dos efeitos na unidade informe de um grande devir, vagamente homogéneo ou rigidamente hierarquizado ; mas não o faz para, em vez disso, encontrar estruturas anteriores, estranhas, hostis ao acontecimento. Fá-lo para estabelecer as diversas séries, entrecruzadas, muitas vezes divergentes mas não autónomas, que permitem circunscrever o "lugar" do acontecimento, as margens do seu acaso, as condições do seu aparecimento. As noções fundamentais que agora se impõem não são as da consciência e da continuidade (com os problemas da liberdade e da causalidade que lhes são correlativos), já não são as do signo e da estrutura. São as do acontecimento e da série, com o jogo de noções que lhes estão ligadas ; regularidade, acaso, descontinuidade, dependência, transformação ; é por intermédio deste conjunto de noções que esta análise do discurso se articula com o trabalho dos historiadores e de maneira nenhuma com a temática tradicional que os filósofos de ontem tomam ainda por história "viva".
Mas é por isso também que esta análise coloca problemas filosóficos, ou teóricos, provavelmente temíveis. Se os discursos devem ser tratados em primeiro lugar enquanto conjuntos de acontecimentos discursivos, qual o estatuto que é preciso dar à noção de acontecimento, que muito raramente foi tida em consideração pelos filósofos? Claro que o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo ; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Mas, mesmo assim, de modo nenhum o acontecimento é imaterial ; é sempre ao nível da materialidade que ele adquire efeito, que ele é efeito ; e consiste, tem o seu lugar, na relação, na coexistência, na dispersão, no recorte, na acumulação, na selecção de elementos materiais ; o acontecimento não é nem o acto nem a propriedade de um corpo ; produz-se como efeito de uma dispersão material, e produz-se numa dispersão material. Digamos que a filosofia do acontecimento deveria encaminhar-se na direcção, à primeira vista paradoxal, de um materialismo do incorporal.
Por outro lado, se os acontecimentos discursivos devem ser tratados segundo séries homogéneas mas descontínuas umas em relação às outras, qual o estatuto que é necessário dar a este descontínuo? Não se trata, bem entendido, nem da sucessão de instantes no tempo, nem da pluralidade dos diversos sujeitos pensantes ; trata-se de cesuras que quebram o instante e o dispersam numa pluralidade de posições e de funções possíveis. Esta descontinuidade atinge e invalida as mais pequenas unidades tradicionalmente reconhecidas ou as que menos facilmente são contestadas: o instante e o sujeito. E, num nível inferior a essas unidades, independentemente delas, é preciso conceber relações entre as séries descontínuas que não são da ordem da sucessão (ou da simultaneidade) numa (ou várias) consciência ; é preciso elaborar — fora das filosofias do sujeito e do tempo — uma teoria das sistematizações descontínuas. Finalmente, se é verdade que estas séries discursivas e descontínuas têm, cada uma delas, dentro de certos limites, a sua regularidade, sem dúvida que já não é possível estabelecer, entre os elementos que as constituem, vínculos de causalidade mecânica ou de necessidade ideal. É preciso aceitar, na produção dos acontecimentos, a introdução do acaso como categoria. Mais uma vez se sente aí a ausência de uma teoria que permita pensar as relações do acaso com o pensamento.
De modo que o pequeno desnível que nos propomos introduzir e fazer actuar na história das ideias, e que consiste em tratar dos discursos enquanto séries regulares e distintas de acontecimentos e não em tratar das representações que possam existir atrás dos discursos, nesse pequeno desnível, receio reconhecer qualquer coisa como uma pequena (e odiosa talvez) maquinaria que permite introduzir na própria raiz do pensamento o acaso, o descontínuo e a materialidade. Triplo perigo que uma certa forma de história procura conjurar narrando o contínuo desdobrar de uma necessidade ideal. Três noções que deverão permitir ligar a história dos sistemas de pensamento à prática dos historiadores. Três direcções que o trabalho de elaboração teórica deverá seguir.
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Ao seguir estes princípios e ao ater-me a este horizonte, as análises que me proponho fazer dispõem-se em duas perspectivas. De um lado, a perspectiva "crítica", que põe em acção o princípio de inversão : procurar distinguir as formas de exclusão, de limitação e de apropriação a que me referi atrás ; mostrar como é que se formaram, a que necessidades vieram responder, como é que se modificaram e deslocaram, qual o constrangimento que exerceram efectivamente, em que medida é que foram modificadas. De outro lado, a perspectiva "genealógica", que põe em acção os outros três princípios: como é que se formaram as séries de discurso, se por intermédio, ou com o apoio, ou apesar dos sistemas de exclusão ; qual foi a norma específica de cada série e quais foram as suas condições de aparecimento, de crescimento, de variação.
A perspectiva crítica em primeiro lugar. Um primeiro grupo de análises poderia incidir naquilo que designei como funções de exclusão. Estudei anteriormente uma dessas funções num período determinado : tratava-se da partilha entre a loucura e a razão na época clássica. Mais tarde, poderemos tentar analisar um sistema de interdito de linguagem : aquele que diz respeito à sexualidade, desde o século XVI até ao século XIX ; de forma alguma se trataria de ver como é que esse sistema desapareceu progressivamente — e felizmente ; mas como é que ele se deslocou e rearticulou desde a prática da confissão, em que as condutas interditas eram nomeadas, classificadas e hierarquizadas, e da maneira mais explícita possível, até ao aparecimento, muito tímido no início, lento, da temática sexual na medicina e na psiquiatria do século XIX; certamente que estas demarcações são ainda um pouco simbólicas, mas pode-se desde já assegurar que as divisões não são aquelas em que é hábito acreditar e que os interditos não tiveram sempre o lugar que se imagina.
No imediato, gostaria de deter-me no terceiro sistema de exclusão. Considerá-lo-ei de duas maneiras. Por um lado, gostaria de descobrir como é que foi feita esta escolha da verdade e também como é que ela foi repetida, reconduzida, deslocada — uma verdade no interior da qual nós estamos retidos, mas que é por nós incessantemente renovada ; deter-me-ei inicialmente na época da sofística e do seu início com Sócrates, ou pelo menos com a filosofia platónica, para ver como é que o discurso eficaz, o discurso ritual, o discurso que detém poderes e perigos, como é que ele se orientou pouco a pouco na direcção de uma partilha entre discurso verdadeiro e discurso falso. Deter-me-ei em seguida na viragem do século XVI para o século XVII, na época em que apareceu, na Inglaterra sobretudo, uma ciência do olhar, da observação, do relato, uma certa filosofia natural sem dúvida inseparável do estabelecimento de novas estruturas políticas, inseparável também da ideologia religiosa : uma nova forma de vontade de saber, seguramente. Finalmente, o terceiro ponto de referência será o início do século XIX, com os grandes actos fundadores da ciência moderna, a formação de uma sociedade industrial e a ideologia positivista que a acompanha. Três cortes na morfologia da nossa vontade de saber ; três etapas do nosso filistinismo.
Gostaria também de retomar a mesma questão, mas sob um ângulo completamente diferente : medir o efeito do discurso com pretensões científicas — o discurso médico, o discurso psiquiátrico, o discurso sociológico também — sobre o conjunto de práticas e discursos prescritíveis que constitui o sistema penal. O estudo dos exames psiquiátricos e do seu papel na penalidade servirá de ponto de partida e de material de base para esta análise.
É ainda nesta perspectiva crítica, mas num outro nível, que pode ser feita a análise dos procedimentos de limitação dos discursos, dos quais designei há pouco o princípio do autor, o princípio do comentário e o da disciplina. Pode-se pensar, nesta perspectiva, num certo número de estudos. Penso, por exemplo, numa análise que incidiria na história da medicina do século XVI ao século XIX ; não se trataria tanto de assinalar as descobertas feitas ou os conceitos utilizados, mas de apurar como é que os princípios do autor, do comentário e da disciplina actuaram na construção do discurso médico e em todas as instituições que o suportam, o transmitem e o reforçam ; procurar saber como é que se exerceu o princípio do grande autor : Hipócrates, Galeno, claro, mas também Paracelso, Sydenham ou Boerhaave ; como é que se exerceu — e até tarde, no século XIX — a prática do aforismo e do comentário, como é que essa prática foi pouco a pouco substituída pela prática do próprio caso a analisar, pela recolha de casos, pela aprendizagem clínica sobre um caso concreto ; e finalmente, qual o modelo em que a medicina procurou constituir-se como disciplina, apoiando-se primeiro na história natural, depois na anatomia e na biologia.
Poderemos também procurar ver a maneira como a crítica e a história literárias dos séculos XVIII e XIX constituíram a personagem do autor e a figura da obra, utilizando, modificando e deslocando os processos da exegese religiosa, da crítica bíblica, da hagiografia, das "vidas" históricas ou lendárias, da autobiografia e das memórias. E será também necessário, um dia, estudar o papel que Freud desempenha no saber psicanalítico, certamente muito diferente do de Newton na Física (e de todos os fundadores de disciplina), muito diferente também do papel que pode desempenhar um autor no campo do discurso filosófico (mesmo que esteja, como Kant, na origem de uma nova maneira de filosofar).
São alguns dos projectos quanto ao aspecto crítico da tarefa, quanto à análise das instâncias de controlo discursivo. Em relação ao aspecto genealógico, este diz respeito à formação efectiva dos discursos, seja no interior dos limites do controlo, seja no exterior deles, seja, o mais das vezes, de um e de outro lado da delimitação. A crítica analisa os processos de rarefacção, mas também de reagrupamento e unificação dos discursos ; a genealogia estuda a sua formação, que é simultaneamente dispersa, descontínua e regular. A bem dizer, estas duas tarefas não são nunca totalmente separáveis ; não há, de um lado, as formas de rejeição, de exclusão, de reagrupamento ou de atribuição ; e depois, do outro lado, num nível mais profundo, o brotar espontâneo dos discursos, que, imediatamente antes ou depois da sua manifestação, são submetidos à selecção e ao controlo (é o que sucede, por exemplo, quando uma disciplina ganha a forma e o estatuto de discurso científico) ; e inversamente, as figuras de controlo podem formar-se no interior de uma formação discursiva (como a crítica literária enquanto discurso constitutivo do autor) : toda a tarefa crítica, interrogando as instâncias de controlo, deve ao mesmo tempo analisar as regularidades discursivas por intermédio das quais aquelas se formam ; e toda a descrição genealógica deve ter em conta os limites actuantes nas formações reais. Entre a tarefa crítica e a tarefa genealógica, a diferença não está tanto no objecto ou no domínio, mas no ponto a atacar, na perspectiva e na delimitação.
Referi-me há pouco a um possível estudo : o dos interditos que atingem o discurso da sexualidade. Em todo o caso, seria difícil e abstracto levar a cabo este estudo sem analisar o conjunto dos discursos literários, religiosos ou éticos, biológicos e médicos, e jurídicos igualmente, discursos onde se trate da sexualidade, ou onde ela se encontre nomeada, descrita, metaforizada, explicada, julgada. Estamos muito longe de ter constituído um discurso unitário e regular sobre a sexualidade ; talvez nunca conseguiremos atingir isso e talvez não seja nessa direcção que nos dirigimos. Pouco importa. Os interditos não têm a mesma forma e não funcionam da mesma maneira no discurso literário e no discurso da medicina, no discurso da psiquiatria ou no discurso da direcção de consciência. E, inversamente, estas diferentes regularidades discursivas não reforçam, não contornam ou não deslocam da mesma maneira os interditos. Por conseguinte, o estudo só se poderá fazer com base nas pluralidades de séries onde os interditos vêm intervir, e que, pelo menos em parte, são diferentes em cada série.
Poderemos considerar também as séries de discursos que no século XVI e XVII eram concernentes à riqueza e à pobreza, à moeda, à produção, ao comércio. Aí, temos de haver-nos com enunciados muito heterogéneos, formulados pelos ricos e pelos pobres, pelos sábios e pelos ignorantes, pelos protestantes ou pelos católicos, pelos administradores reais, pelos comerciantes ou pelos moralistas. Cada qual tem a sua forma de regularidade, e igualmente os seus sistemas de constrangimentos. Nenhum de entre eles prefigura exactamente essa outra forma de regularidade discursiva que que irá assumir o aspecto de uma disciplina e que se chamará "análise das riquezas" e depois "economia política". Foi no entanto a partir desses sistemas de constrangimentos que se formou uma nova regularidade, a qual retomou ou excluíu, justificou ou afastou alguns dos seus enunciados.
Pode-se pensar também num estudo que incidiria nos discursos concernentes à hereditariedade e que se podem encontrar repartidos ou dispersos, até ao início do século XX, em disciplinas, observações, técnicas e receitas diversas ; tratar-se-ia de mostrar qual o jogo de articulações por intermédio do qual essas séries se vieram a recompor na figura, epistemologicamente coerente e reconhecida pela instituição, da genética. É esse trabalho que tem vindo a ser realizado por François Jacob, com um brilho e uma ciência inigualáveis.
As descrições críticas e as descrições genealógicas devem alternar, apoiar-se umas nas outras e completar-se. A parte crítica da análise prende-se com os sistemas de envolvimento do discurso ; ela visa assinalar e distinguir esses princípios de prescrição, de exclusão, de raridade do discurso. Digamos, jogando com as palavras, que ela põe em prática uma aplicada desenvoltura. A parte genealógica da análise prende-se, pelo contrário, com as séries da formação efectiva do discurso : visa captá-lo no seu poder de afirmação, e não entendo com isso um poder que estaria em oposição ao poder de negar, mas o poder de constituir domínios de objectos, em relação aos quais se poderá afirmar ou negar proposições verdadeiras ou falsas. Chamemos positividades a esses domínios de objectos ; e digamos, jogando segunda vez com as palavras, que se o estilo crítico era o da desenvoltura estudiosa, o humor genealógico será o de um positivismo feliz.
Em todo o caso, há pelo menos uma coisa que deve ser sublinhada : assim entendida, a análise do discurso não vai revelar a universalidade de um sentido, mas trazer à luz do dia a raridade que é imposta, e com um poder fundamental de afirmação. Raridade e afirmação, raridade da afirmação — e de maneira nenhuma uma generosidade contínua do sentido ou uma monarquia do significante.
E que os que têm lacunas de vocabulário venham agora dizer — se isso lhes soa melhor e tanto mais quanto não lhes diz respeito — que isto é estruturalismo.
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Se não tivesse a ajuda de modelos e outros apoios, sei que não teria podido levar a cabo estas investigações de que procurei apresentar-vos o esboço. Julgo dever muito a Dumézil, uma vez que foi ele que me incitou ao trabalho numa idade em que eu pensava ainda que escrever era um prazer. Mas devo muito também à sua obra ; que ele me perdoe se me afastei do seu sentido ou se me desviei do rigor dos seus textos, que hoje nos dominam ; foi ele que me ensinou a analisar a economia interna de um discurso de forma completamente diferente da exegese tradicional ou do formalismo linguístico; foi ele que me ensinou a assinalar, pelo jogo das comparações, de um discurso a outro, o sistema das correlações funcionais ; foi ele que me ensinou a descrever as transformações de um discurso e as relações com a instituição. Se pretendi aplicar um método semelhante a discursos diferentes dos discursos lendários ou míticos, essa ideia veio-me sem dúvida por ter diante dos olhos os trabalhos dos historiadores das ciências, e sobretudo os de Canguilhem ; é a ele que eu devo a compreensão de que a história da ciência não se detém forçosamente na alternativa : ou crónica das descobertas, ou descrição das ideias e das opiniões que rodeiam a ciência pelo lado da sua génese indecisa ou pelo lado das suas consequências exteriores ; mas que se pode, que se deve fazer a história da ciência enquanto um todo simultaneamente coerente e transformacional de modelos teóricos e de instrumentos conceptuais.
Mas penso que a minha dívida, em grande parte, é em relação a Jean Hyppolite. Sei que aos olhos de muitos a sua obra está subordinada ao reino de Hegel, e que a nossa época, quer pela lógica ou pela epistemologia, quer por Marx ou por Nietzsche, procura escapar a Hegel : e aquilo que há pouco procurei dizer a propósito do discurso é muito infiel ao logos hegeliano.
Mas para que se escape realmente a Hegel é necessário que se aprecie exactamente o que nos custa esse afastamento ; é necessário que se saiba até onde, insidiosamente talvez, ele se aproximou de nós ; é necessário que se saiba o que há ainda de hegeliano naquilo que nos permite pensar contra Hegel ; e é necessário que se avalie em que medida é que a nossa acção contra Hegel não será talvez ainda uma armadilha que o próprio Hegel nos coloca e no termo da qual ele nos espera, imóvel, noutro lugar.
Ora, se são muitos os que estão em dívida para com J. Hyppolite, é porque ele percorreu de modo infatigável — para nós, antes de nós — esse caminho pelo qual nos separamos de Hegel, pelo qual nos afastamos, e pelo qual somos reconduzidos a ele de outra maneira, e depois somos novamente forçados a deixá-lo.
J. Hyppolite tinha tido o cuidado, em primeiro lugar, de dar uma presença a essa grande sombra de Hegel, sombra um tanto fantasmagórica, que vagava desde o século XIX e com a qual nos debatíamos obscuramente. Foi com uma tradução, a tradução da Fenomenologia do Espírito, que J. Hyppolite deu a Hegel essa presença ; e que Hegel está presente nesse texto em francês, prova-o a consulta que foi feita pelos alemães, procurando compreender melhor aquilo em que se tornava — num instante, pelo menos — a versão alemã.
J.Hyppolite procurou e percorreu todas as saídas deste texto, como se a sua preocupação fosse esta: pode-se ainda filosofar ali onde Hegel já não é possível? Pode ainda existir uma filosofia que não seja hegeliana? Aquilo que não é hegeliano no nosso pensamento é necessariamente não-filosófico? E aquilo que é anti-filosófico é forçosamente não-hegeliano? Quanto a essa presença de Hegel que J. Hyppolite nos ofereceu, ele não procurou apenas fazer-nos a sua descrição histórica e meticulosa: pretendia também fazer dela um esquema de experiência da modernidade (é possível pensar à maneira hegeliana as ciências, a história, a política e o sofrimento de todos os dias?), e pretendia fazer da nossa modernidade, inversamente, a experiência do hegelianismo e, nesse passo, da filosofia. Para Hyppolite, a relação com Hegel era o lugar de uma experiência, de um afrontamento em que nunca há a certeza de que a filosofia saia vencedora. Ele não se servia do sistema hegeliano como se se tratasse de um universo de certeza ; via nele o risco extremo da filosofia.
Daí, penso eu, os deslocamentos que operou, não digo no interior da filosofia hegeliana, mas sobre sobre ela, e sobre a filosofia tal como Hegel a concebia ; daí também toda uma inversão de temas. Em vez de conceber a filosofia enquanto totalidade que finalmente é capaz de se pensar a si própria e de se reapropriar no movimento do conceito, J.Hyppolite fazia filosofia tendo como fundo um horizonte infinito, uma tarefa sem termo : levantando-se sempre cedo, a sua filosofia nunca estava à beira de se concluir ao fim do dia. Tarefa sem termo, por conseguinte, tarefa sempre recomeçada, votada à forma e ao paradoxo da repetição : a filosofia, para J.Hyppolite, enquanto pensamento inacessível da totalidade, era o que podia haver de repetível na extrema irregularidade da experiência ; era o que se dá e se subtrai, enquanto questão que é incessantemente retomada na vida, na morte, na memória : era desse modo que o tema hegeliano da realização da consciência de si era transformado num tema da interrogação repetitiva. Mas, dado ser repetição, a filosofia não era ulterior ao conceito ; não tinha de prosseguir o edifício da abstracção, devendo manter-se sempre precavida, romper com as generalidades adquiridas e pôr-se em contacto com a não-filosofia ; devia aproximar-se, o mais perto possível, não daquilo que a realiza, mas daquilo que a precede, daquilo que ainda não despertou a sua preocupação ; ela devia retomar — para as pensar, não para as reduzir — a singularidade da história, as racionalidades regionais da ciência, a profundidade da memória na consciência ; surge assim o tema de uma filosofia presente, inquieta, móbil ao longo da sua linha de contacto com a não-filosofia, não existindo senão por sua causa e revelando o sentido que essa não-filosofia tem para nós. Ora, se a filosofia está nesse repetido contacto com a não-filosofia, o que é o começo da filosofia? Será que a filosofia já está aí, secretamente presente naquilo que não é filosofia, começando a formular-se a meia voz no murmúrio das coisas? Mas, sendo assim, talvez o discurso filosófico não tenha razão de ser ; ou deve começar com uma fundação simultaneamente arbitrária e absoluta? Vemos que o tema hegeliano do movimento adequado ao imediato é substituído pelo tema do fundamento do discurso filosófico e da sua estrutura formal.
Finalmente, último deslocamento que J.Hyppolite operou na filosofia hegeliana : se a filosofia deve começar como discurso absoluto, o que é que se passará com a história, e que começo é esse que começa com um indivíduo singular, numa sociedade, numa classe social, no meio das lutas?
Estes cinco deslocamentos, na medida em que levam a filosofia hegeliana até ao limite extremo e na medida em que a fazem passar para o outro lado dos seus próprios limites, convocam, umas a seguir às outras, todas a grandes figuras da filosofia moderna que Jean Hyppolite não deixou de confrontar com Hegel : Marx com as questões da história, Fichte com o problema do começo absoluto da filosofia, Bergson com o tema do contacto com a não-filosofia, Kierkegaard com o problema da repetição e da verdade, Husserl com o tema da filosofia enquanto tarefa infinita ligada à história da nossa racionalidade. E, para além destas figuras filosóficas, podemos distinguir todos os domínios de saber que J.Hyppolite invocava em torno das suas próprias questões : a psicanálise com a estranha lógica do desejo, a teoria da informação e a sua aplicação na análise dos seres vivos, numa palavra, todos os domínios a partir dos quais se pode colocar a questão de uma lógica e de uma existência que não páram de atar e desatar os seus laços.
Penso que esta obra, articulada em alguns livros maiores, e mais ainda, investida em investigações, no ensino, numa perpétua atenção, num alerta e numa generosidade permanentes, numa responsabilidade aparentemente administrativa e pedagógica (quer dizer, na realidade, duplamente política), cruzou, formulou os problemas mais fundamentais da nossa época. Somos muitos os que estamos infinitamente obrigados para com ele.
É por dele ter recebido, sem dúvida, o sentido e a possibilidade daquilo que faço, por muitas vezes me ter esclarecido quando eu tateava às cegas, é por essa razão que coloco o meu trabalho sob o seu signo e que o evoco ao terminar a apresentação dos meus projectos. É na sua direcção, para essa falta — onde ao mesmo tempo experimento a sua ausência e a minha própria imperfeição — que se cruzam as questões que agora me coloco.
Dado que lhe devo tanto, compreendo que, ao convidarem-me a ensinar aqui, a escolha que os senhores fizeram é, em boa parte, uma homenagem que lhe fazem ; estou-vos reconhecido, profundamente, pela honra que me deram, e não menos o estou pelo que a ele é devido nesta escolha. Se não me sinto à altura da tarefa de lhe suceder, sei, no entanto, e se essa felicidade nos pudesse ter sido dada, que teria sido, nesta tarde, encorajado pela sua indulgência.
E compreendo melhor por que é que tive há pouco tantas dificuldades em começar. Sei agora qual é a voz que eu gostaria que me precedesse, que me conduzisse, que me convidasse a falar e que se alojasse no meu próprio discurso. Sei o que é que havia de temível em tomar a palavra, dado que o fazia neste lugar, onde o escutei, e onde ele já não está para me escutar.
FIM
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